letscia 26/06/2024
64 (2024) viúva daquele marido vivo.
"À força de viverem em um mundo de convenção, esses homens de sociedade tornam-se artificiais. A natureza para eles não é a verdadeira, mas essa fictícia, que o hábito lhes embutiu e que alguns trazem do berço, pois aí os espera a moda para fazer neles presa"
Existem algumas peculiaridades relacionadas à leitura de um livro, sendo a mais famosa a sensação de ser transportado para uma realidade inventada, poder que cresce dependendo das habilidades descritivas do autor. Se eu fizesse uma hierarquia de experiências imersivas com romances, Senhora provavelmente estaria bem perto do topo.
No enredo, vê-se a crítica de José à sociedade em que vivia através da figura de um casamento voltado quase que unicamente para a ascensão social. O resultado desse casamento foi uma vida de aparências que reduziu o amor e o prazer genuíno ao asco mútuo: o casal retratado é infeliz, apesar de próspero, e o dinheiro foi o preço dessa vida ensaiada, onde ambos são chamados "atores" pelo narrador, desempenhando os respectivos papéis: a senhora e seu marido comprado.
Aurélia mostra-se uma jovem de muita inteligência e delicadeza, contrastando com sua implacabilidade. Ela não nasceu em berço de ouro e sofreu muito na vida, mas pôde encantar as pessoas após sua ascensão. A personagem faz escolhas questionáveis e luta para lidar com as consequências.
Seixas, por sua vez, é um homem comum que troca o amor extraordinário e sem reservas de Aurélia pela estabilidade financeira de sua família. Ele é mais um na história que não sabe lidar com as consequências de seus atos. Quando o destino o une a Aurélia, ele parece travar um debate interno, onde o amor por sua "esposa-senhora" entra em conflito com seu orgulho ferido. Ele a quer, mas não se contenta com a ideia de que ela o tenha, ao invés do contrário. Ele foi comprado e não consegue abrir mão de sua liberdade. Além de orgulhoso, demonstra ser superficial, o que fica perceptível quando o narrador descreve Fernando não como um observador passivo da realidade, mas como um observador passivo da realidade alheia, ou seja, da experiência tida pelos outros, mas sem uma real abstração.
Ambos os personagens são prisioneiros dessa alta sociedade à qual não pertencem originalmente, mas por acaso. Aurélia, agora senhora de si, finalmente tem voz. Ela sempre foi inteligente, mas nunca foi vista, agindo nos bastidores dos cálculos de seu irmão. Quando percebida, é apenas pela ganância e interesse daqueles que a rejeitaram outrora. Seixas não é afetado porque os costumes lhe são estranhos, mas porque ele não quer assumir o papel de subordinado, apesar de idealizar sua mulher-senhora.
Não acredito que o amor tenha triunfado depois do final desta obra, não por pessimismo, mas pela lógica dos fatos. A resolução parece mais um momento de nostalgia, onde o casal acredita que seus documentos, a "alforria" e a "promessa", eram suficientes para mitigar a insegurança que feria o orgulho de ambos. Sendo realista, uma palavra ou um pequeno tom de ironia, já era o bastante para inflamar o ego deles. E, além disso, o dinheiro de Aurélia foi o problema fantasma do início até o fim: quando ela era pobre, eles não poderiam ter conforto ou oferecer provisão à família Seixas, e quando ela enriquece, o poder da esposa torna-se um motivo de humilhação para ele, que não tinha nada a oferecer que ela já não pudesse obter por meios próprios - exceto o seu amor. Aurélia, por sua vez, nunca pediu nada além de sua completa devoção, nem mesmo uma aliança ou uma promessa de amor eterno. Quando se vê desprezada, a protagonista entende que o amor também pode machucar quando não é dado a partir das motivações certas e que a sua paixão por Seixas não traria satisfação alguma, caso não fosse devidamente retribuída.
Apesar de extremamente proveitosa, a leitura às vezes é cansativa. É um ótimo livro para ser lido em um único fim de semana, mas não é ideal para ser lido durante uma rotina pesada. Não há lugar para distrações, já que a todo momento existem mensagens a serem captadas, detalhes nas entrelinhas, tendo muito significado até mesmo as descrições, tidas como adornos na maior parte das histórias.
Concluo dizendo que Senhora é, portanto, uma grande obra de nossa literatura mundial, um ótimo livro.