Gramatura Alta 10/08/2023
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O Brasil está dividido ao meio. Após diversos conflitos entre pessoas bem diferentes, essa foi a única solução encontrada: separar o país em Norte e Sul. Os nortistas habitam o mundo normal, e os sulistas, o mundo meio-mágico. Um contrato selado entre os dois povos proíbe a migração de uma região para a outra. Enquanto os dois mundos coexistirem sem se misturarem, a paz reinará.
Alisa, que vivia com sua família na região Norte, certo dia recebeu uma visita inesperada. A diretora de uma escola sulista veio informar que ela pertencia ao mundo meio-mágico e teria que se mudar para lá a fim de receber seu dom quando chegasse a hora. Então, a jovem precisou driblar os dois mundos para se tornar quem precisava ser e continuar vendo sua família.
Como se não bastasse o choque cultural e os problemas comuns da adolescência, um grande acontecimento sem seu colégio perturbou ainda mais a ordem das coisas. Agora, Lisa está diante do maior desafio de sua vida, que envolve a descoberta do verdadeiro amor, de sua real identidade e, talvez, de um novo mundo que ninguém acreditava existir.
ENTRE 3 MUNDOS é uma história de fantasia direcionada para o público infantil e deve ser lido e apreciado com isso em mente. Alisa é uma personagem bem construída, com pensamentos, falas e atitudes condizentes com sua idade e sua origem. E origem é uma das maiores qualidades da obra. Os personagens possuem origens diferentes, são diversos e inclusivos, possuem, individualmente, um lugar de fala. E essa característica da obra abre possibilidades, sem dúvidas, para encontrar um leitor que irá se identificar com algum dos personagens, talvez até pela primeira vez.
Inclusive isso é parte da história. Os personagens meio-mágicos possuem um livro e um personagem desse livro que os representa, bem como seus poderes. Há uma nítida preocupação com identificação, em encontrar um lugar no mundo que faça sentido e que traga alguma segurança, longe de juízos e preconceitos de terceiros. É algo que perdura por toda a história, esse pertencimento a algum lugar, essa busca de encontrar sua verdadeira identidade, sem preocupação com o que outras pessoas podem pensar.
Os cinco personagens principais, Alisa, Daniel, Sol, Nina e Marco, cada um tem seu lugar de fala, todos eles são diferentes entre si, em termos de origem, de cultura, em personalidade, em sonhos, em ideias, são pessoas distintas e com a mesma importância em termos de pertencimento e mensagem. É uma lição essencial para crianças em fase de crescimento, amadurecimento e que passam por um longo período de aceitação e de busca para encontrar quem são e qual mundo pertencem. Isso é muito refletido na história.
Há uma didática a ser apresentada e cabe ao pequeno leitor compreender e aprender. Entretanto, existem alguns pequenos problemas dos quais a autora foge, e eu até me convenço de que o aprofundamento deles não é realmente necessário dentro da obra. Talvez até sejam retomados e mais explorados nas continuações, uma vez que se trata de uma trilogia. Apenas um deles, penso que deveria ter recebido um pouco mais de atenção. Não sei se houve algum apoio pedagógico na construção da narrativa, não há nenhuma referência a isso nos agradecimentos ou notas, mas a relação entre Alisa e Daniel beira a toxicidade e faltou mais sensibilidade e cuidado para deixar isso bem claro para quem lê.
Alisa e Daniel são melhores amigos. Alisa é apaixonada pelo irmão de Daniel, Caio, e Daniel é secretamente apaixonado por Alisa. É o triângulo amoroso mais clichê da literatura. Mas Caio é o garoto mais bonito do colégio, é o pegador de meninas, sempre trocando de relacionamento sem se preocupar com os sentimentos das meninas. Alisa mesmo já ficou brevemente com ele e foi rapidamente substituída. Através das conversas com as amigas, Alisa finalmente percebe a paixão de Daniel, mas ela não sabe se também sente algo por ele, ou se é apenas amizade. Nessa busca por compreender seus sentimentos, ela também precisa lidar com as birras e ciúmes de Daniel por não ser prontamente correspondido. E é exatamente esse comportamento de Daniel e essa dependência emocional de Alisa, por amor ou amizade, que é muito mal tratada no livro, passando uma romantização ou mesmo uma mensagem de que isso é normal e aceitável.
Você, leitor, pode pensar que o livro reflete a realidade. É comum, muito comum, essas brigas entre jovens, essas birras por não ser amado da mesma maneira que se ama, e não há nenhum problema em retratar esse comportamento nos livros. Mas uma vez que o livro é voltado para um público que precisa de didática, se o problema é apresentado, torna-se necessário discutir e apresentar o quanto isso é prejudicial e pode influenciar profundamente os sentimentos e o psicológico da criança, por toda a fase da adolescência e até mesmo refletir em seus comportamentos quando se tornam adultas. Se o livro se propõe a ser inclusivo, didático, ele não pode se limitar à inclusão social e de minorias, deixando outras discussões soltas e sem o mesmo tratamento responsável.
Vale o alerta para quem for ler, que o relacionamento entre Alisa e Daniel é problemático, precisa de atenção, que uma menina não precisa se sentir ameaçada ou abandonada apenas porque não correspondeu às expectativas do garoto. Se ele deixar de conversar com a menina porque foi rejeitado, ela não é a culpada. Ela não é obrigada a ceder ao que ele deseja, ela não precisa atender aos caprichos do garoto. É esse ensinamento que fica superficial na história, faltou um pouco mais de cuidado na maneira de apresentar e discutir.
Mesmo assim, e em quase sua totalidade, ENTRE 3 MUNDOS é uma leitura deliciosa e divertida. Uma primeira parte passada na realidade, no dia-a-dia dentro do colégio, com todos os pequenos dramas comuns ao ambiente e às relações entre as crianças, para depois partir para duas outras partes totalmente incluídas na fantasia, em um novo mundo mágico e cheio de aventuras e novos conflitos. Há evidentes inspirações em Harry Potter, como a criança que pensa que é normal, mas na verdade possui poderes; um acontecimento importante que ela passou quando era bebê e que mudou seu destino; uma escola com aulas de magia; um mundo de pessoas normais separado de um mundo de pessoas com poderes; a personagem principal que possui segredos herdados de seus pais e que é protegida pelos professores, entre outros detalhes. Mas tudo está bem inserido na trama, nos personagens, e não chega a incomodar. Quando bem usadas, as inspirações em outras obras mais ajudam do que atrapalham. Aconselho a leitura, com algum cuidado, caso tenha 14 anos ou menos, e aproveite uma fantasia nacional que, finalmente, atinge grupos que normalmente são ignorados por tantos outros autores.
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