Coruja 25/10/2022Explorando relacionamentos subterrâneos com “O Fantasma da Ópera”Do primeiro acorde grandioso que parece vibrar nos ossos, é difícil não se deixar cativar pelo romance e tragédia de O Fantasma da Ópera. Desde sua estreia em 1986 (o mais longínquo em cartaz), o musical é um dos maiores sucessos da Broadway, importado para todos os cantos do mundo, com a trilha sonora vertida em 17 línguas.
O curioso é perceber que, embora os personagens da história já sejam parte do nosso imaginário coletivo, eles são mais conhecidos pelas adaptações do que pela história original. Na verdade, já conversei com mais de uma pessoa que se surpreendeu, ao descobrir que o musical (e o filme) era adaptação de um livro. E, quem costuma ir atrás do livro achando que será uma experiência parecida, acaba sem saber bem como lidar com o original.
De fato, a obra de 1910 do francês Gaston Leroux não é nem o mesmo gênero de sua adaptação mais famosa, o musical de Andrew Lloyd Webber. Leroux traz uma narrativa investigativa, cujo foco é o mistério por trás dos acontecimentos da Ópera - acidentes misteriosos, furtos, assassinatos, chantagens, sequestros -, que costuram ficção com fatos e pessoas reais. Webber enfatiza o triângulo amoroso entre a bela soprano Christine Daaé; Raoul, o garboso Visconde de Chagny; e o monstruosamente genial Erik, o dito fantasma que vive nos subterrâneos da Ópera de Paris.
Erik tenta se fazer amar por Christine, por quem nutre uma perigosa obsessão, competindo por sua atenção com Raoul, que foi companheiro de infância da cantora e com isso abre vantagem nos afetos dela. Os personagens se entrelaçam através da música: foi pela música tocada pelo pai de Christine que ela e Raoul primeiro se aproximaram; é ensinando música que Erik estabelece contato com a jovem; é subindo ao palco pela primeira vez para encantar Paris com sua voz que Christine retorna à atenção de Raoul.
Mas, se a música une o triângulo amoroso, também nos vemos no meio de um jogo de gato e rato, com o Fantasma perseguindo Christine Raoul tentando entender o que está acontecendo para salvar a mocinha. Tudo isso enquanto Erik tenta estabelecer seu poder dentro da Ópera, em meio a uma troca de administradores que pode frustrar seus planos artísticos.
Como um quarto personagem dessa quadrilha está a própria Ópera, lar do Fantasma e de Christine, repleta de luxos e mistérios, uma cidade labiríntica, cuja construção está ligada a história de Erik - quase um imperador entre suas paredes. Algumas das melhores partes do livro são aquelas em que Leroux explora todo esse cenário de público e bastidores, realidade e a fabricação de ilusões, própria de um teatro como a Ópera.
É interessante também refletir que essa mixórdia de real e imaginário que faz parte do livro é acolhida pela Ópera Garnier: qualquer tour que você faça por lá cita o romance clássico. Em 2018, quando estive em Paris no final de outubro, visitei a Ópera no meio de uma caça ao tesouro inspirada no Fantasma, parte de uma ação ligada ao Dia das Bruxas, em que os visitantes recebiam um mapa e uma máscara e saíam explorando o prédio e interagindo com atores vestidos a caráter.
Dito tudo isso, gostaria de alertar que espectadores do musical que decidam se aventurar pelo livro ansiando pelo desenvolvimento do romance de Christine e Erik vão se desapontar. Mas talvez a exploração mais crua dos crimes de Erik, e com o texto despido das icônicas canções que roubam nossa atenção, seja suficiente para compreender o quão tóxico é esse relacionamento.
Ok, então, vamos por partes. A partir daqui, spoilers e uma mistura de interpretações baseadas simultaneamente no livro e no musical, para tratar de reflexões sobre relacionamentos sob um olhar moderno - ainda que o enredo se passe em 1870. Ainda, permitam-me dizer: eu gosto de O Fantasma da Ópera. Li o livro pela primeira vez quando era adolescente e não me decepcionei na releitura - que fiz na edição da Zahar, repleta de notas explicativas sobre compositores, cantores e outros fatos referenciados na história (como a famosa queda do lustre, que aconteceu de verdade). Assisti ao filme no cinema, e a gravação do musical mais de uma vez. A trilha sonora dele está em uma dúzia das minhas playlists mais escutadas.
Assusta-me, contudo, o fervor com que algumas pessoas defendem que Christine deveria ter terminado a história ao lado do Fantasma (ao ponto de Webber ter criado uma continuação, o terrível Love Never Dies). Na verdade, mesmo o romance com Raoul me incomoda sobremaneira. Na minha opinião, melhor seria se Christine tivesse terminado sozinha, colhendo os louros de seu talento. Mas, bem, considerando a realidade da época em que tudo se passa, o final foi o melhor possível, dentro das circunstâncias.
Erik bem poderia ser parente de Heathcliff, de O Morro dos Ventos Uivantes, em sua obsessão doentia com Christine, capaz de tudo para consegui-la para si. Ele se utiliza da figura do “Anjo da Música”, personagem benévolo das histórias contadas pelo pai da moça, para se aproximar dela. Aproveita-se da vulnerabilidade de uma jovem órfã, que foi superprotegida e cresceu acreditando em contos de fadas como coisa real. Pela memória amorosa do pai morto, ganha acesso exclusivo, e uma ascendência que lhe permite ditar a conduta de Christine mesmo fora de suas lições de canto.
Quando ela compreende que o “Anjo” é na verdade um homem que a esteve manipulando o tempo todo, Erik a ameaça, ameaça aqueles que ela ama, e até o inteiro universo que os une: barris de pólvora nos subterrâneos da Ópera com poder suficiente para levar quarteirões pelos ares e a culpa de todas essas mortes ‘será sua, Christine, por ter me rejeitado’. Ele a obriga a se isolar, e quando isso não é suficiente, ele a sequestra.
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“– Agora tenho medo de voltar a morar com ele dentro da terra!
– O que a obriga a voltar para lá, Christine?
– Se eu não voltar para junto dele, grandes tragédias podem sobrevir! Mas não aguento mais! Não aguento mais! Sei perfeitamente que devemos ter pena das pessoas que moram “embaixo da terra”… Mas este é horrível demais! O momento, contudo, se aproxima; só tenho mais um dia! E se eu não for, será ele que virá me buscar com sua voz. Ele me arrastará para sua morada, debaixo da terra, e se porá de joelhos diante de mim, com sua caveira! E dirá que me ama! E cairá em prantos! Ah, essas lágrimas, Raoul! Essas lágrimas nos dois buracos da caveira. Não posso mais ver essas lágrimas correrem!”
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Por semanas, Christine fica a mercê de Erik, sozinha nos apartamentos construídos por ele muito abaixo de quaisquer masmorras, sem contato com qualquer outro ser vivo além dele, sem chance de escapar, sem ninguém ter conhecimento sobre seu paradeiro. E, como Leroux jamais nos dá o ponto de vista de Christine e apenas uma breve narrativa da moça tentando se explicar para Raoul após seu desaparecimento, podemos apenas inferir o terror que ela sentiu como prisioneira de alguém que não tivera escrúpulos em mentir e usar seus sentimentos, que já a ameaçara antes e que insiste na ideia de fazê-la sua esposa, obrigando-a até mesmo a usar um anel de compromisso.
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“Estava um breu à minha volta; ao longe, uma tênue luminosidade vermelha clareava um ângulo de parede, um canto de uma encruzilhada. Gritei. Só a minha voz enchia as paredes, pois o canto e os violinos haviam se calado. E eis que subitamente, na escuridão, uma mão pousou sobre a minha… ou, melhor, alguma coisa óssea e gelada cingiu meu pulso e não me largou mais. Gritei. Um braço me enlaçou pela cintura e me ergueu. Debati-me por um instante, aterrorizada; meus dedos escorregaram ao longo das pedras úmidas, sem conseguirem se agarrar. Parei então de me mexer, achando que morreria de pavor. Arrastavam-me para a luzinha vermelha; entramos naquela luz e então vi que estava nas mãos de um homem envolto num grande manto preto, que usava uma máscara que lhe ocultava o rosto inteiro. Fiz um esforço supremo; meus membros se enrijeceram, minha boca se abriu novamente para berrar meu pavor, mas uma mão a fechou, mão que senti sobre meus lábios, sobre minha carne… e que cheirava a morte! Desmaiei.”
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O livro nunca deixa completamente clara a idade de Christine; sua única referência é que ela teria ‘?o coração puro de uma jovem de quinze anos’?. Combinado com a amizade de infância com Raoul, aceita-se que ela esteja mais ou menos pelos vinte anos. O musical não dá pistas sobre o assunto, mas a lápide ao final do filme - que é uma versão do musical de Webber -, nos diz que ela tem entre quinze e dezesseis anos. Erik, por sua vez, é contemporâneo de Madame Giry, o que o coloca no mínimo na faixa dos quarenta anos.
Então cá temos uma adolescente sendo manipulada por um homem significantemente mais velho, usando da memória do pai falecido da moça para torná-la complacente com os desejos do Fantasma.
No segundo sequestro de Christine, esse direto do palco (sim, ela é sequestrada duas vezes), Erik, através de chantagens contra os administradores do teatro, consegue que se cante uma ópera de sua autoria. Erik mata o tenor que subiria ao palco em seguida, e assume o papel de Don Juan cantando com sua amante, interpretada por Christine, a canção The Point of no Return.
Tendo a oportunidade, prestem atenção na letra dessa música e me digam depois se não é assustador, especialmente a se considerar que Christine é forçada a cantar as palavras colocadas em sua boca e que a submetem a Erik (que só no meio ela percebe ter substituído o outro ator).
Raoul, decididamente, não é tão melhor prospecto que Erik. Quando reencontra Christine no teatro, ele tenta usar de seu título para ficar a sós com ela - algo, aliás, encorajado pelo irmão mais velho, que vê a possibilidade de uma amante na Ópera perfeitamente aceitável, e nem sonha a possibilidade de ter uma cantora como cunhada. E, quando escuta uma voz masculina em seu camarim, antes mesmo de renovar a amizade de infância, fica quase louco de ciúmes.
Os sumiços e comportamento esquivo de Christine o torturam não em pensar que ela esteja em perigo, mas sim no risco de um rival e ele oscila radicalmente entre considerá-la um anjo com todas as virtudes e uma cortesã que se aproveita de seus talentos para conseguir protetores que avancem sua carreira na Ópera. Há pelo menos um momento em que ele a julga uma prostituta, mas nem isso detém sua necessidade de posse.
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“Lançou um olhar desesperado para o céu, para as estrelas; desferiu socos no seu peito em chamas; amava e não era amado! Com um olhar melancólico, contemplou aquela aleia desolada e fria, a noite pálida e morta. Não existia nada mais frio, mais morto, que o seu coração: amara um anjo e desprezava uma mulher! Como a fadinha do Norte zombou de você, Raoul! De que adianta, não é mesmo?, ter rosto tão gracioso, fronte tão tímida e sempre à beira de cobrir-se com o véu cor-de-rosa do pudor, se é para passear na noite solitária, ao fundo de um cupê de luxo, na companhia de um misterioso amante? Não deveria haver limites sagrados para a hipocrisia e a mentira? E não deveria ser proibido ter os olhos claros da infância quando se tem alma de cortesã?”
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Quando Christine finalmente quebra o silêncio e, aterrorizada, confidencia ao amigo as loucuras do Fantasma, o fato de ter sido feita prisioneira por semanas; Raoul não tenta lhe oferecer segurança e conforto, mas sim aproveita o momento para declarar seu amor e sua firme resolução de ter Christine para si. Da mesma maneira que Erik, ele se aproveita de um momento de absoluta fragilidade para manipular a mocinha direto para seus braços. Mesmo quando Raoul corre contra o tempo para salvar a amada, ele fracassa e se torna mais um trunfo de Erik contra Christine, mais um item com o qual chantageá-la. Raoul não é capaz de salvar a ninguém, nem a si mesmo.
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“– Ah, que ódio tenho dele! exclamou Raoul. – E você, Christine, responda, preciso que me responda para escutar com mais calma a continuação dessa extraordinária história de amor, e você, odeia-o?
– Não! – disse Christine simplesmente.
– Ai! Por que tantas palavras! Certamente o ama! Seu medo, seus terrores, tudo isso também é amor, e do mais delicioso! O inconfessável – ruminou Raoul com amargura. – Aquele que, quando pensamos nele, dá calafrios. Imagine, um homem que mora num palácio subterrâneo! E riu…
– Quer então que eu volte para lá! – interrompeu bruscamente a moça. – Preste atenção, Raoul, não voltarei mais de lá!
Houve um silêncio terrível entre os três… os dois que falavam e a sombra que escutava, atrás…
– Antes de responder – disse finalmente Raoul com uma voz lenta –, eu desejaria saber que sentimento ele lhe inspira, uma vez que não o odeia.”
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E aqui, volto ao fato de que Christine em nenhum momento tem espaço para fazer de fato ouvir sua voz - o que é tristemente irônico, considerando que é pela voz sublime que ela é conhecida -, a narrativa nunca traz o seu ponto de vista para o centro da história; ela é, por boa parte da ação, um objeto disputado por Erik e Raoul; exceto pelo final, quando sua capacidade de compaixão salva a todos, incluindo quem ignorava estar em risco.
Gosto de fazer um exercício de interpretação quando termino um romance, algo que chamo “?o que acontece depois do felizes para sempre?”?. Diferente do musical, no livro, Raoul tem um irmão mais velho. Esse irmão morre, assassinado por Erik.
Na confusão do desaparecimento de Christine diante de toda a plateia da Ópera, e da descoberta dos planos que Raoul fizera de fugir com a soprano - bem como a conclusão bastante lógica de que o Conde seria contra esse casamento - Raoul se torna suspeito da morte dele. Afinal, o Fantasma é apenas uma “lenda” do teatro, não é mesmo? Não é uma figura em que a polícia vai acreditar.
Em outras palavras, depois de passar um dia sendo torturado e humilhado por Erik, quase ao ponto do suicídio, Raoul é liberto não porque lutou de forma honrosa contra seu algoz, mas porque a empatia de Christine e sua disposição ao sacrifício despertam uma centelha de arrependimento no Fantasma. Ele então tem de fugir com a soprano, perdendo no processo a família, o título, a fortuna e o futuro brilhante.
Do meu ponto de vista, uma vez passado e consumado o primeiro ardor da paixão, quando as dificuldades forem se somando e somando, e sabendo que não pode voltar para casa porque sua fuga certamente não ajudou com as suspeitas de fratricídio, Raoul descobrirá um profundo ressentimento pela esposa. Afinal, paixão não é o suficiente para manter um relacionamento; e, a não ser que todos os acontecimentos na câmara de tortura tenham-no amadurecido profundamente, Raoul é um rapazola mimado, que passa a maior parte do tempo preocupado e se compadecendo dos próprios sentimentos e não tem muito respeito por Christine, que está saindo de toda essa situação traumatizada - e pensando nesse trauma, ele pode ser tão manipulativo quanto Erik (mas, como ele tem um nariz, então, tudo bem? Vá entender).
É, eu sei, estou vendo a coisa toda de uma maneira muito pessimista. Talvez eles tenham de fato vivido felizes para sempre cantando entre fiordes na Noruega. Quem sabe? Mas, bem, eu não gosto do Raoul, como não gosto do Erik, e acho alarmante a ideia de que o relacionamento de Christine com qualquer um dos dois possa ser visto como ideal romântico ao qual se aspirar. Infelizmente, como uma ingênua cantora de ópera sem família ou protetores em meados do século XIX, as chances de Christine não cair num relacionamento predatório não me parecem as melhores. O mimado Visconde talvez ainda seja a melhor opção.
Mas tudo isso são suposições e interpretações feitas de um ponto de vista moderno. Não julgo Leroux pelas escolhas que fez com sua história, e destrinchá-la dessa maneira certamente é uma boa reflexão sobre papéis de gênero, reconhecer relacionamentos abusivos, e até sobre o dissociar uma obra do autor, uma vez que boa parte do fascínio e sedução do Fantasma vêm de sua genialidade artística. E ele não faz nada para tornar a obsessão de Erik por Christine algo minimamente palatável. Em compensação, eu julgo o Webber, afinal, ele conseguiu tornar sua adaptação ainda mais problemática do que o romance original (sério, o que é aquele desastre de enredo de Love Neves Dies???).
Elucubrações catastróficas à parte, repito que gosto de O Fantasma da Ópera. É um bom mistério, embora a forma entrecortada como Leroux vai e volta entre personagens por vezes prejudique um pouco o ritmo (super empolgada no relato do persa e de repente corta para cena nada a ver). O livro conseguiu me surpreender na primeira leitura e, mais de década depois, a releitura me trouxe questões importantes que nem me passavam pela cabeça quando era adolescente (ou seja, ele conseguiu me surpreender uma segunda vez). Valeu a escavação pelas profundezas subterrâneas da obra, sem dúvida.
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