Lucas 24/02/2020
Realismo trágico: Nunca a realidade foi tão "ficção científica"
Se há um tópico histórico passado muito atual nos dias presentes é a tragédia nuclear de Chernobyl (ou "Tchernóbil", numa grafia que se aproxima mais da pronúncia em português). Ocorrido na madrugada de 26 de abril de 1986, o conhecimento básico do desastre traz a importância desse acontecimento nos dias atuais: o impacto da tragédia ainda será sentido por um incalculável número de gerações.
Chernobyl, situada ao norte da Ucrânia, perto da divisa com a Bielorrúsia, era uma aglomeração urbana menor, mas os reatores da usina nuclear que haviam na região ficavam dentro dos seus limites. Muitas vezes a cidade é confundida com Pripyat, esta sim maior, com quase 50 mil habitantes em 1985 e cujo centro ficava a cerca de 2 quilômetros da usina. Tanto Pripyat quanto Chernobyl hoje são cidades fantasmas, evacuadas após a catástrofe nuclear.
A tragédia foi resultante do colapso do sistema de resfriamento do reator número 4 da usina, que passava por um teste de funcionamento em condições críticas. Feito para geração de energia elétrica, um reator opera a partir de concentrações controladas de Urânio, um elemento químico altamente radioativo que, com o passar dos séculos perde prótons e se torna Chumbo, este um elemento mais conhecido. O manuseio e controle do Urânio nestas condições é feito basicamente com água resfriada, além de outros elementos. O entendimento pleno de todo o desastre de Chernobyl requer uma significativa dose de conhecimentos químicos e físicos, mas, essencialmente, o reator explodiu por um aumento repentino da vaporização, que, consequentemente, gerou um buraco no teto, com o núcleo do reator exposto, liberando incalculáveis quantidades de Césio, Iodo, Estrôncio, Urânio e outros elementos radioativos até que o incêndio fosse controlado, apenas duas semanas após a explosão.
Basicamente, a "ocidentalização" do tema se deve à maravilhosa adaptação seriada lançada pela HBO em 2019, protagonizada por Jared Harris e Stellan Skarsgard e dirigida por Craig Mazin. Os cinco episódios da produção são praticamente impecáveis em descrever estas questões técnicas e também dramatizam com perfeição todo o esforço que se seguiu para evacuação das regiões vizinhas à usina, além de uma infinidade de outros aspectos.
Deixando de lado a série num primeiro momento (ela ainda retornará na presente resenha), há também o livro Vozes de Tchernóbil – A história oral do desastre nuclear, obra-prima da escritora bielorrussa Svetlana Aleksiévitch, publicada em 1997 mas só lançada no Brasil em 2016 pela Companhia das Letras, aproveitando os trinta anos da tragédia e também o fato de a autora ter vencido o Nobel de Literatura em 2015. A narrativa traz dezenas de relatos de pessoas comuns que foram afetadas pelo acontecimento: em sua maioria, moradores das zonas de evacuação, como professores, políticos, idosos, donas-de-casa, mas também soldados rasos, os chamados "liquidadores" (responsáveis pela "limpeza" da região), etc. São vários monólogos transcritos, muitos deles coletivos no sentido de vários personagens relatarem seus sentimentos num mesmo "capítulo".
A autora foi a primeira jornalista da história a vencer o Nobel. Não que ela se considere uma jornalista propriamente dita, mas é bem perceptível pela construção da obra a sua preocupação não em construir um pano de fundo ou um cenário que abrigue seus personagens, mas simplesmente ouvir e relatar os sentimentos dos diversos envolvidos com a tragédia. Diferentemente da série televisiva, que também pontua as questões mais comuns do desastre mas de uma forma secundária (seu foco está mais nas autoridades e em seus dilemas e conflitos), Svetlana lança luz ao impacto que a tragédia trouxe ao povo da região de Pripyat que, de uma hora para outra, se viu obrigado a abandonar suas casas.
Assim, sob a escrita desnudam-se dezenas de relatos tocantes, seja pela beleza com que foram transcritos pela escritora como também pela crueza que eles trazem. E por isso não podem ser aqui revelados em detalhes, mas, no geral, o leitor conseguirá imaginar as dificuldades das autoridades em evacuar a região, por exemplo. Um raio de 30 quilômetros da usina teve que ser esvaziado de uma hora para outra. Quase 140 mil pessoas tiveram que deixar suas casas. Mas como explicar à população que eles tinham que abandonar tudo o que possuíam por causa da exposição nuclear, invisível e impalpável? Como explicar o conceito de radionuclídeos aos idosos da região? Como justificar para essa camada mais popular a operação de guerra que foi montada para o combate à expansão da radioatividade? Como explicar a crianças que elas teriam que deixar seus bichos de estimação (contaminados) antes de partir?
Se de uma forma meramente pessoal, do ser humano como espécie, todo esse processo foi traumático, imagine-se sob o ponto de vista da natureza, que recebe um enfoque especial em praticamente todos os relatos. A crueza chocante de Svetlana não se situa em estimar a quantidade de radioatividade lançada na atmosfera. Ou na quantidade real de vítimas, instantâneas ou não. Os olhos de Svetlana se dirigem para as subjetividades, as pequenas coisas. Os danos em florestas, na relva, nas plantas, nos animais domésticos e selvagens adquirem um espaço relevante e que dão uma noção mais abrangente do desastre.
Sobra espaço, todavia, para os relatos humanos advindos daquilo que se convencionou chamar de "refugiados de Chernobyl". Ilustra-se um quadro de traumas psicológicos que serão transmitidos para várias gerações. Não apenas nesse sentido mais implícito, mas também os efeitos colaterais de saúde que os antigos moradores adquiriram e que, inevitavelmente, vão ser repassados aos seus descendentes, também servem de pano de fundo para vários relatos emocionantes. Com esse enfoque e de uma forma direta perceptível nos relatos, Svetlana dá voz a esta população não apenas para que eles exponham todas as dificuldades práticas que passaram, mas também para falarem sobre uma certa "fobia" que o povo de Chernobyl ou Pripyat sofreu perante a pessoas de outros lugares.
Um outro enfoque muito interessante e que a história e até a mídia em geral ignoram quando tratam do acidente nuclear é a Bielorrússia, país natal da autora e vizinho à Ucrânia (ambos na época pertencentes à URSS). A série televisiva mostra a preocupação das autoridades (justa, de fato), com a intoxicação do Rio Dnieper, que abastece Kiev, a capital da Ucrânia, situada a menos de 150 quilômetros ao sul. Todavia, não só a série como todo o arcabouço histórico que cerca o acidente esquecem dos sofrimentos do povo bielorrusso que, em função de correntes de vento, acabou recebendo a maior parte da radiação que foi lançada na atmosfera. Atualmente, estima-se que 20% dos quase 10 milhões de habitantes do país vive em áreas contaminadas por elementos radioativos, dado importante e até quase desconsiderado no Ocidente.
Se o cerne da narrativa de Svetlana não é descrever a tragédia nas relações entre as autoridades estatais da União Soviética, ela consegue com maestria transcrever as percepções que os entes populares tinham a respeito do alto comando. Uma crença cega ao Estado, com suas informações distorcidas que tachavam de pessimismo tudo o que as questionava, foi se desconstruindo. Na verdade, inicialmente houve uma "tranquilidade" dos governantes, mas eles, depois de certa relutância, viram que se tratava de um caso gravíssimo e, mediante esforços de guerra, conseguiram evitar uma catástrofe ainda maior, que, contudo, poderia ser mais "branda" se não tivesse havido esta fé inicial no heroísmo da "Pátria Soviética". Os relatos que mencionam estes momentos de quebra de paradigma, de que o Estado estava errado, comprovam o raciocínio do então dirigente da URSS, Mikhail Gorbatchev (1931-), que em sua biografia descreveu em termos políticos a tragédia de Chernobyl como o episódio que marcou início do fim do bloco (o que acorreu mais de cinco anos depois, em dezembro de 1991). A hesitação em admitir a periculosidade do quadro, contudo, custou muitas vidas, seja de soldados ou voluntários ou de pessoas que adquiriram doenças cancerígenas no curto prazo.
Este lado mais político é melhor exposto na série televisiva. Aliás, não há nenhuma fundamentação de que a adaptação da HBO baseou-se no livro, mas fica bem perceptível que alguns artifícios foram empregados. O principal deles, e que é o primeiro relato de Vozes de Tchernóbil é, inclusive o escopo narrativo mais voltado ao "popular" na série, que é a história de Liudmila Ignatenko, esposa de Vassili Ignatenko, um dos bombeiros que foram controlar o incêndio minutos após o acidente (sábia decisão da autora em colocar o relato dela como o primeiro: é o que mais sintetiza todo o tom narrativo da obra). Tanto a série quanto o livro se complementam: não há espaço aqui para aquela já milenar questão de "o livro é melhor que o filme/adaptação". A série é crua, há momentos em que parece um filme de ficção científica, em outros um filme de terror ou de suspense ou ainda em outros uma série de política. Fato é que Chernobyl da HBO é uma das melhores coisas já produzidas nos últimos anos e, da mesma forma que a obra-prima de Svetlana Aleksiévitch merece ser lida, a série merece ser assistida.
Se aqui na América Latina tem-se o realismo mágico, que tanto encanta o leitor, pode-se concluir que Svetlana Aleksiévitch promoveu um realismo "trágico", marcado por pinceladas de ficção científica que foram dramaticamente reais. Sua técnica de pontuar a narrativa (em determinados trechos, ela coloca entre parênteses algum aspecto do entrevistado naquele momento do relato, como se ele está chorando ou pensando, algo sutil, mas genial) traz ainda mais choque a uma narrativa que, desde a sua concepção, estava fadada a se preocupar com o povo afetado pelo desastre. É difícil escolher um relato melhor que outro (uma mãe relatando os problemas físicos da filha decorrentes da radiação, um operador de câmera que tirava imagens dos animais e um historiador cético quanto ao comunismo são alguns dos melhores), mas todos eles em conjunto fornecem um olhar tocante, que muito emociona e ensina e que valem, e muito, a leitura.