Renato 28/10/2016
Nos rastros de Borges
Muitos alegam que Alberto Manguel é o grande herdeiro de Jorge Luis Borges. Pode ser em erudição, na proximidade real que teve com o mestre argentino. Mas
o grande escritor contemporâneo tem uma identidade própria que poucas vezes cruza com a de Borges. Outros argentinos tiveram caminhos paralelos ou sequenciais mais próximos. Juan Rodolfo Wilcock é um deles.
Sua prosa está bem próxima à confabulação erudita
imaginária de Borges. 'A sinagoga dos iconoclastas' é um romance, ou uma coletânea de relatos com um fio em comum que pode ser chamada de brilhante. Mesmo que em algum momento se entenda uma falta de profundidade em uma narrativa ou outra, esta superficialidade é ilusória, porque o livro tem uma unidade. Wilcock descreve em linguagem formal, quase científica, a biografia de 36 personagens fictícios, acompanhados de personalidades científicas, filosóficas e artísticas de diversas épocas recentes. Seu tom enciclopédico, digno de uma farsa borgeana, retrata os feitos destes personagens. Em cada um, temos um verdadeiro romance, ainda que em somente uma página. Muita ironia e sarcasmo, linguagem técnica para destruir a técnica sem doses homeopáticas. Erudição para discutir as bases filosóficas e científicas do nosso tempo. Habitam nestas páginas exóticos racistas que criam teorias para justificar a segregação, a biologia usada para explicar a sociologia, a máquina de criar frases aleatórias com a profundidade de Kant. Sem apelar para o humor fácil, Wilcock explora uma racionalidade que não é feita de argumentos, mas que parte de vontades, e se assim é, não tem como se pautar em pura objetividade.
No auge da civilização de Wilcock, principalmente século XIX, início do século XX e sua poeira ocre, o homem de toda razão faz a ordem, e a ordem é delirante, apesar de quando muito, ela é consenso.
Apesar de abalar todo o mundo da razão, Wilcock não se aventura no mundo do irracionalismo, do misticismo, na crítica primária de um mundo vangloriando um outro alternativo, como se a venda de produtos de outra ordem fosse venda nenhuma. Wilcock não é tão primário, ao contrário, é o construtora de uma razão mais elaborada que todos nós; ele para antes da defesa do pecado, guarda sua caneta antes de chegar ao relativismo que iguala toda forma de conhecimento, tornando a ignorância uma ciência por escolha, a mediocridade uma manifestação natural. Maior que todos os seus homens de ciência e que os ídolos de todos nós, Wilcock retrata a mentalidade injusta que faz da ferramenta uma arma.
Um dos livros mais brilhantes que li nos últimos anos.