Paulo 25/08/2017
A fantasia é aquele gênero literário que nos permite imaginar coisas incríveis, dar asas à nossa imaginação. Por isso eu gosto tanto desse gênero literário. Me encanta ver quando um autor consegue produzir uma ideia tão original e conseguir passá-la para o papel. Desde que eu conheci o trabalho da Giulia na Conferência Fantástica que aconteceu aqui em Itaguaí em maio de 2017, fiquei muito curioso para ler o livro. Não à toa eu corri para comprar o livro com ela. E ela não me decepcionou apesar de alguns problemas decorrentes muito mais desse ser o primeiro trabalho dela do que necessariamente falhas. Eu espero coisas muito legais da Giulia para os próximos anos.
Temos uma narrativa em terceira pessoa mais afastada e onisciente. A autora usa esse padrão de narrativa de forma a conseguir nos mostrar os diferentes núcleos de personagens. Para este livro, esse estilo de contar histórias ficou perfeito e serviu para que o leitor conhecesse os personagens a fundo. Temos bons diálogos e em nenhum momento senti qualquer dificuldade durante a leitura. Fui capaz de ler bem rápido até (como eu costumo fazer com livros que eu leio rápido demais, eu pisei no freio para curtir mais). Os capítulos são bem espaçados enquanto outros são curtos dando bastante dinamismo à história. Achei que eles serviram muito bem para o progresso do enredo que a autora quis contar.
Porém, a gente percebe um pouco de inexperiência na escrita. Determinadas situações acabam ficando previsíveis para o leitor. Não é nada que atrapalhe a experiência final, mas alguns leitores mais exigentes podem acabar sendo mais cruéis na hora de criticar. Gente, é o primeiro trabalho da Giulia e só o fato de ela ter entregue uma narrativa muito competente já é motivo para aplausos. Acho que a autora precisa praticar um pouco mais a escrita e acho que ela até já faz isso porque me recordo de ela dizer que escreve no Wattpad. Tenho certeza que no próximo livro já teremos uma evolução nítida na escrita.
A melhor qualidade da escrita da autora é a construção e desenvolvimento de personagens. Para um livro infanto-juvenil, ela consegue entregar pessoas redondinhas. Isso no sentido de apresentar suas características físicas e psicológicas por completo, com suas motivações, sentimentos, qualidades e defeitos. A protagonista, por exemplo, vai sendo obrigado a amadurecer bastante ao longo da história. Giulia usa a metáfora do corvo e do pássaro branco para mostrar o que uma rainha precisa ter para poder governar. Já Edric é o fiel amigo e tem algum segredo escondido por trás de seus pais. Ele é o clichê do par romântico e até gostaria de ver a Giulia aprofundando mais o personagem do Edric em um próximo livro. Para sair um pouco dessa coisa do amigo com um plus.
Achei que o Gabriel foi um pouco deixado de lado. No começo a autora começou a trabalhar um pouco da personalidade do personagem e até mais para a metade quando eles estão em Gloriam, ela começa a revelar mais camadas do personagem, mas ficou por aí. Este é um personagem que tem tudo para ser bastante interessante. Ariane e Analice são incríveis; opostas, porém complementares. Só a autora precisa tomar cuidado nas partes de Analice para não levar a história para um ângulo mais violento (a menos que seja isso que ela queira). São trechos em que um autor fica tentado em construir um personagem realmente maligno para gerar uma tensão no leitor. Enfim, gostei muito da construção de personagens e senti apenas que a Giulia precisa trabalhar mais alguns deles e fugir de alguns clichês para uma futura continuação.
Temos aqui uma grande jornada de amadurecimento. Esse é o grande tema da história. A personagem tem dúvidas no começo da narrativa e aos poucos as situações vão se colocando umas sobre as outras e a obrigando a tomar determinadas decisões. A gente percebe que a própria personalidade da protagonista vai mudando porque ela deixa de ser reativa para ser mais pró-ativa no final da história. Quantas vezes não deixamos que os outros tomem decisões por nós e não nos sentimos felizes por isso? Quando tomamos as rédeas de nossas vidas é que entendemos de fato o valor de todas as coisas.
Outro tema importante que a autora começa a trabalhar aqui é o do preconceito. Por conta de acontecimentos passados, os feiticeiros de inverno são mal vistos pela sociedade. Algo que a personagem repete toda vez que é julgada é que não importa se ela é culpada ou inocente, por ser uma feiticeira de inverno ela já é culpada automaticamente. E uma história que ela ouve falar bastante no começo da história, pode ser apenas uma meia verdade. As pessoas são rápidas ao julgar alguém, sem entender suas motivações ou objetivos. Isso é um espelho do que acontece nos dias de hoje em muitos dos casos.
Sobre a narrativa em si, aqui eu queria dar um puxão de orelhas na autora. Mas, deixe eu primeiro tocar nos aspectos positivos. O sistema de magias que ela criou é bastante original. Não me recordo de ter me deparado com algum livro que lide com magias baseadas em estações do ano. Ela consegue desenvolver bem esse sistema, demonstrando sutilezas como a maneira como isso afeta a personalidade dos personagens ou as formas como eles afetam a natureza ao seu redor. Acho que a autora poderia desenvolver mais essa relação com a natureza do que simplesmente passar para algo mais ligado à magia elemental. Fica aqui uma dica para a autora: tem um jogo do Zelda antiguinho chamado Oracle of Seasons. É um adventure em que o personagem precisa pegar vários poderes baseados nas estações do ano para poder passar pelos puzzles. Pode ser uma baita inspiração.
A construção do mundo ainda é pequena. Mas, novamente, por ser o primeiro trabalho, nada de criticar negativamente. Acho até que a autora avançou bastante na construção de mundo ao colocar alguns reinos e mostrar como eles se relacionam com Torrent. Não sei como é o processo de escrita da Giulia, mas uma dica que funciona com vários autores é a criação de fichas de referência. Você pode usar isso no Word ou tem outros programas na internet que auxiliam à beça o autor. Nessas fichas de referência, você constrói os reinos e vai fazendo tipo uma wiki com informações para ajudar ao autor. Essas wikis nunca são utilizadas por completo, mas são ferramentas essenciais para a narrativa.
Meu puxão de orelhas fica em relação ao final. É preciso avisar ao leitor que este livro vai ter uma continuação. Porque, caso contrário, a impressão que fica é que se trata de um livro sem final. Ele não tem um, e não tem nada na edição que me diga que este é um volume 1 ou um "Continua" no final da história. Segundo, é necessário criar um clímax na história que serve como um ponto alto ou uma resolução de um conflito. Por exemplo, a guerra que acontece mais na frente (não vou comentar de quem contra quem para não dar spoilers), podia ter sido trabalhada de maneira mais descritiva e dessa forma compunha-se o ápice do livro levando a um epílogo que seria aquilo que acontece a seguir. Fecharia super bem esse primeiro volume e deixaria os fãs roendo as unhas pela continuação. Para mim, este é o ponto mais fraco do livro e é por isso que eu dei apenas uma corujinha para a narrativa.
Uma História de Primavera é um livro promissor de uma autora que tem bastante talento para escrita. Apesar de alguns problemas devido à inexperiência, quero aplaudir a autora por ter conseguido escrever aquilo que ela queria. Muita gente mais velha não consegue sequer começar a escrever alguma coisa e a Giulia, com metade da idade do que muita gente por aí, consegue entregar uma história competente e com sinais de bastante genialidade. Personagens muito bem construídos e um sistema de magias para lá de original revelam um livro que tem muito mais escondido nas entrelinhas do que imaginamos. Só fiquei decepcionado um pouco com o final, mais porque eu não sei se vai ter uma continuação (acredito que sim) ou se a edição não lembrou de colocar um simples "Continua" no final da história.
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