Luiz.Goulart 24/03/2022Uma pérola no fogConfesso minha ignorância sobre a existência deste livro de Charles Dickens, escritor que é uma verdadeira instituição inglesa. Já havia seus livros mais conhecidos (David Copperfield, Oliver Twist, Um Conto de Duas Cidades, A Pequena Dorrit, Grandes Esperanças e Um Conto de Natal), mas nunca tinha tomado coragem para ler nenhum. E veja que coisa: comecei por ler o autor pelo único que não conhecia.
A Casa Soturna foi um romance publicado em 1853 e é considerado pela crítica como a obra mais perfeita de Dickens. Em suas 800 páginas, o autor discorre sobre aqueles temas sempre presentes nos seus livros, como o sofrimento das crianças pobres nas ruas inglesas. Aqui, Dickens, que já havia trabalhado no sistema judiciário britânico, tece críticas ácidas ao Judiciário por meio do motor da história: um processo que se arrasta por gerações sem jamais chegar perto de uma solução, pondo em xeque o mastodôntico sistema jurídico inglês do século XIX.
Esta história, como todas as demais do autor, já foi adaptada mais de uma vez para as telas em filme e minissérie com seus mais de 40 personagens magistralmente manipulados pelo autor, revelando o perfeito domínio da narrativa, apesar de deixar o leitor algumas vezes confuso com os diferentes enredos que vão se entrecruzando. O bom humor de Dickens é surpreendente por estar em uma trama que aborda pobreza, morte, assassinato e solidão.
A primeira página do livro já dá uma mostra da narrativa especial na descrição da ambientação não lisonjeira de Londres. Imediatamente, lembrei-me da descrição feita da cidade Paris no livro O Perfume, de Patrick Süskind, com a diferença de que na Casa Soturna o conjunto se mostra através do olhar, enquanto no Perfume tudo está ligado ao olfato. Eis Londres e seu “esplendor”:
“Tanta lama nas ruas, como se a superfície da terra houvesse acabado de emergir das águas, e não seria maravilha encontrar-se um megalossauro, de doze metros de comprimento mais ou menos, saracoteando-se como um lagarto elefantino, no alto da colina de Holborn. Poder-se-ia imaginar que a fumaça que descia das chaminés, formando uma garoa leve e escura, com flocos de fuligem, tão grandes como fornidos capulhos de neve, era luto posto pela morte do sol. Cães indistintos no meio do lodaçal. Em não melhor estado os cavalos, enlameados até os antolhos. Pedestres, entrechocando os guarda-chuvas, como que contagiados todos de mau humor, escorregando nas esquinas das ruas, onde dezenas de milhares de outros pedestres vinham deslizando e escorregando desde que o dia raiou (se é que um dia assim pode raiar), acrescentavam novos depósitos às crostas e mais crostas de lama, que aderiam tenazmente naqueles pontos ao calçamento, acumulando-se a juros compostos. Nevoeiro por toda a parte. Nevoeiro rio acima, onde este corre entre verdes ilhotas e campinas; nevoeiro rio abaixo, onde ele rola, sujo, entre os renques de embarcações e a sujeira das praias duma grande cidade (grande e imunda). Nevoeiro nos pantanais de Essex, nevoeiro nas alturas de Kent. Nevoeiro insinuando-se nas cozinhas de brigues carvoeiros; nevoeiro pairando sobre os estaleiros e suspendendo-se do cordame dos grandes navios; nevoeiro caindo sobre as amuradas de barcaças e pequenos botes. Nevoeiro nos olhos e gargantas de antigos reformados de Greenwich, respirando, asmáticos, junto às lareiras de suas enfermarias; nevoeiro na boquilha e no fornilho do cachimbo vespertino do colérico capitão de navio mercante, fechado no seu camarote; nevoeiro beliscando cruelmente os dedos dos pés e das mãos do grumetezinho a tremer ali no tombadilho. Gente ociosa, nas pontes, espreitando por cima dos parapeitos o firmamento baixo de nevoeiro, toda cercada de nevoeiro, como se se encontrasse num balão, a plainar em meio de nuvens de névoa.”
Selecionei outro belíssimo trecho onde o autor descreve a miséria do maravilhoso personagem Jo, um dos meninos inesquecíveis e que são puro deslumbramento descritivo em uma obra “Dikensiana: “...não é um autêntico selvagem estrangeiro: é apenas o artigo comum fabricado em casa. Sujo, feio, desagradável em todos os sentidos. De corpo, uma criatura comum das ruas comuns, pagão apenas na alma. A imundície doméstica o enxovalha, os parasitas domésticos o devoram, as chagas domésticas estão nele, os farrapos domésticos o cobrem: a ignorância nativa, floração do solo e do clima ingleses, afunda-lhe a natureza imortal, pondo-a num nível inferior ao dos brutos que perecem. Adianta-te, Jo, com as tuas maneiras inflexíveis! Da sola dos pés ao alto da cabeça, nada há de interessante em ti!”.
Infelizmente o livro, que estava esgotado há anos, foi relançado com graves problemas na tradução (imperdoável numa edição de luxo com capa dura e belas ilustrações) pela Biblioteca Áurea selo da Editora Record, custando mais de R$ 70,00. É incompreensível a tradução de nomes próprios como Ricardo, Haroldo, João e Príncipe. Uma coisa irritante de ser lida que jamais vi sequer num livro ruim. Os erros de revisão ficam evidentes no descuido pela tradução de termos de uso lusitano no lugar de brasileiros, como “quinta”, para terreno; “miúdo”, para criança; “gira”, para maluco e “algibeira”, para bolso.
Apesar de tudo isso, o prêmio de ler Dickens não tem comparação. Agora não tenho qualquer desculpa para não devorar David Copperfield, Oliver Twist e seus amigos, que há tempos me olham acabrunhados da estante.
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