Paula 18/02/2017"A vila de minha infância depois da guerra era feminina. Das mulheres.
Não me lembro de vozes masculinas. Tanto que isso ficou comigo:
quem conta a guerra são as mulheres. Choram. Cantam enquanto choram."
Em A guerra não tem rosto de mulher, a ucraniana Svetlana Aleksiévitch, vencedora do Prêmio Nobel de Literatura em 2015, reúne depoimentos de diversas mulheres que participaram como soldados na Rússia durante a Segunda Guerra. Neste ensaio jornalístico e de múltiplas vozes, surpreende e emociona encontrar histórias tão verdadeiras e sofridas de mulheres, relatos quase sempre silenciados até mesmo pela história. Afinal, como constata Svetlana sobre a história da guerra:
"Foi escrito por homens e sobre homens, isso ficou claro na hora. Tudo o que sabemos da guerra conhecemos por uma “voz masculina”. Somos todos prisioneiros de representações e sensações “masculinas” da guerra. Das palavras “masculinas”. Já as mulheres estão caladas."
Assim como ocorre na literatura, as vozes femininas são também silenciadas em suas experiências pessoais e relatos, ainda que sua participação ativa e corajosa durante a guerra tenha sido indispensável. Milhares de mulheres lutaram nos campos de batalha e nesse registro tomamos conhecimento das dificuldades que enfrentaram para conseguir se afirmar entre os batalhões de homens que julgavam que elas fossem frágeis e incapazes de lutar. O mais doloroso, entre as muitas histórias dolorosas que este livro nos conta, é ver que, diferente dos homens, consagrados como heróis depois da guerra, essas mulheres enfrentaram o preconceito de suas famílias e da sociedade sexista, sempre acostumada a punir aquelas que desafiam os papéis de gênero tradicionais. Ao voltar para casa depois da guerra, tiveram que esconder suas medalhas e suas histórias por medo de que sua participação as impedissem de obter um bom casamento e constituir uma família.
O sofrimento das mães que perderam seus filhos e até mesmo que tiveram que abandoná-los durante a guerra; a violência sexual sofrida pelas mulheres de todas as nacionalidades e que quase sempre não é comentada; a preocupação que as mulheres tinham de se ferirem ou ficarem com marcas enquanto estavam na frente de batalha, preocupadas com a imagem e o corpo que precisavam ter para conseguir se casar depois que a guerra acabasse; os amores e as perdas durante os muitos anos de guerra; o envelhecimento precoce de meninas que foram corajosas o suficiente para ir lutar pela sua pátria quando já não havia homens onde moravam que pudessem se alistar; esses são alguns dos muitos temas, surpreendentemente atuais, que Svetlana resgata nessas histórias. Histórias de mulheres silenciadas há tanto tempo que faz-se urgente ouvi-las. E cada livro que dá voz a tantas vozes silenciadas merece, e muito, ser lido e compartilhado. Principalmente se ele nos mostra novas perspectivas que contestem essa história única e masculina.
"E a história? Ela está na rua. Na multidão. Acredito que em cada um de nós há um pedacinho da história. Um tem meia paginazinha, outro tem duas ou três. Juntos, estamos escrevendo o livro do tempo. Cada um grita sua verdade. O pesadelo das nuances. E é preciso ouvir tudo isso separadamente, dissolver-se em tudo isso e transformar-se em tudo isso. E, ao mesmo tempo, não perder a si mesmo. Unir o discurso da rua e da literatura. "
Svetlana Aleksiévitch. A guerra não tem rosto de mulher. São Paulo: Companhia das Letras, 2015.