Tamara 19/02/2017
Obs: os trechos entre aspas são quots (trechos, sem spoilers), do livro.
"O ser humano é maior do que a guerra...
A memória guarda justamente os momentos em que ele foi maior. Ali, ele é guiado por algo mais forte do que a história. Preciso pegar o que é mais amplo — escrever a verdade sobre a vida e a morte em geral, e não só a verdade sobre a guerra. Fazer a pergunta de Dostoiévski: o quanto há de humano no ser humano, e como proteger esse humano em si? Sem dúvida, o mal é tentador. Ele é mais hábil do que o bem. Mais atraente. Mergulho cada vez mais fundo no infinito mundo da guerra, todo o resto perde um pouco das cores, torna-se mais comum do que o comum. Um mundo grandioso e feroz. Entendo agora a solidão da pessoa que volta de lá. É como se viesse de outro planeta ou do além. Ela tem o conhecimento de algo que os outros não têm, e só é possível conquistá-lo ali, perto da morte. Quando tenta transformar isso em palavras, tem a sensação de uma catástrofe. A pessoa se cala. Ela quer contar, o resto queria entender, mas estão todos impotentes."
Quando pensamos em guerra, principalmente na segunda guerra mundial, pensamos em homens corajosos, que deram seu sangue e sua vida por seus países. Homens que saíram de suas casas, deixaram suas mães, esposas, filhas e irmãs em casa, chorando e lamentando suas partidas, e imersas em uma longa espera. Porém, não foi bem assim. Na Rússia, no exército vermelho, muitas mulheres, querendo lutar de forma igual com seus homens, foram para a linha de frente, e tiveram papel fundamental e decisivo em cada uma das batalhas. Muitas eram apenas meninas, que deveriam estar na escola, outras, eram mães que tiveram de deixar seus bebês para trás, mas ali, lutando por seu país, eram uma só, com um só desejo, o de ajudar naquilo que fosse possível. Elas trabalharam como padeiras, enfermeiras, comunicadoras, mas também foram soldados, tanquistas e sargentos.
"... Em junho de 1943, na batalha de Kursk, confiaram a nós o estandarte do regimento, e o nosso, o 129º Regimento Especial de Comunicações do 65º Exército, era composto em 80% por mulheres. E é isso o que eu quero falar, para que você imagine... Para que entenda... O que se criou em nossa alma, o tipo de pessoa que éramos na época, nunca mais vai existir. Nunca! Tão inocentes de tão sinceras. Com tamanha fé! Quando nosso comandante recebeu o estandarte e deu a ordem: ‘Regimento, sob o estandarte! De joelhos!’, todos nos sentimos felizes. Pareceu-nos uma prova de confiança, agora éramos um regimento como todos os outros: de tanques, de artilharia. Ficamos ali chorando, todos tínhamos lágrimas nos olhos. Você não vai acreditar agora, mas todo meu organismo fica tenso de emoção; minha doença — eu estava com cegueira noturna por subnutrição, por esgotamento nervoso —, pois então, minha cegueira noturna desapareceu. Entende? No dia seguinte eu estava curada, eu me curei, tanta foi a comoção da minha alma...”
Porém, assim que voltaram, feridas física e emocionalmente, essas mulheres foram obrigadas a esquecer, como se aquilo já não mais fizesse parte delas. Tiveram de voltar a ser mulheres, como se exigia na época, tiveram de ser donas de casa, mães, esposas, e tiveram de abafar essa parte tão importante de seu passado, e ainda, muito tempo depois, enquanto davam suas entrevistas para o livro, muitas delas não se sentiam a vontade em falar daquilo, ou seus maridos não lhes permitiam. Foram mulheres que viram o inimaginável, conviveram com a dor e a perda de perto e merecem, tanto quanto os homens, mérito, por terem feito parte dessa luta e por terem vencido e voltado vivas para casa para darem continuidade às suas vidas, mesmo que uma parte de si tenha ficado para trás no processo.
“Se havia amor na guerra? Havia! E as mulheres que encontramos lá são esposas maravilhosas. Amigas fiéis. As pessoas que se casaram na guerra são as mais felizes, os casais mais felizes. Nós também nos apaixonamos no front. Em meio a fogo e morte. É um vínculo sólido. Não vou negar que também teve outras coisas, porque foi uma guerra longa, muitos de nós estivemos na guerra. Mas me lembro mais do que é luminoso. Nobre.
Me tornei alguém melhor na guerra... Sem dúvida! Me tornei uma pessoa melhor lá porque havia muito sofrimento. Vi muito sofrimento, e eu mesmo sofri muito. Lá, logo se descarta o que é secundário na vida, o que é supérfluo. Você entende isso..."
nessa reportagem tocante e sensível, Svetlana Aleksievitch conseguiu capitar a essência de cada mulher, abordar seus maiores medos, suas fraquezas e também suas boas lembranças, e as reuniu, em um livro que mais parece um álbum de recortes, onde podemos compreender e entender um pouquinho de cada uma daquelas mulheres e podemos de certa maneira homenageá-las ao conhecermos suas histórias.
"O gravador registra as palavras, conserva a entonação... As pausas. O choro e o embaraço. Entendo que quando uma pessoa está falando acontece algo maior do que o que fica no papel depois. Lamento o tempo todo por não poder “gravar” os olhos, as mãos. A vida delas na época da conversa, a vida pessoal. Separada. Seus “textos”."
Assim que foram lançados os livros de Svetlana Aleksievitch aqui no Brasil, imediatamente fiquei com vontade de lê-los, pois percebi que a autora traz reportagens sobre acontecimentos intensos e tocantes que aconteceram no passado e dá voz para as pessoas que estiveram neles, além de ter uma curiosidade forte em como seria a sua escrita, uma vez que ela foi a ganhadora do prêmio Nobel de literatura de 2015. Porém, adiei a leitura por algum tempo, por ter certo receio da complexidade que poderia encontrar ali, mas dia desses, com vontade de ler sobre a segunda guerra, seu livro foi minha primeira opção de leitura, e então o comecei. Assim que iniciei a leitura, encontrei alguns relatos bastante fragmentados, que a princípio me pareceram estranhos, mas imaginei que aquilo era apenas uma introdução, uma amostra pequena do que encontraríamos a seguir na leitura, e que ela passaria a adotar uma escrita mais continuada. Porém, a medida que fui evoluindo no livro, fui ficando fascinada e tocada por cada um dos relatos, mas também percebi, com espanto, que aquele seria o modo de narração de todo o livro, sendo que ela trazia o fragmento do relato de uma mulher, logo em seguida trazia o de outra e assim por diante e isso fez com que a leitura, apesar de positiva, tivesse um certo gosto de decepção para mim, pois acabei vendo o livro como um enorme quebra cabeças, sendo cada relato ali uma pecinha diferente e única, que se encaixam para formar um panorama geral. Mas por esses relatos serem muitos, acabei não fixando nenhum na mente, e ao final do livro, tinha poucas lembranças muito específicas do que havia lido, e tinha apenas um vislumbre geral de todo o ocorrido.
O ponto mais positivo da obra para mim, foi o fato de a autora capitar a essência de cada uma daquelas mulheres, enquanto ela se sentava em suas salas e cozinhas, e conversava com elas sem amarras, sem receios, e lhes perguntava as coisas mais difíceis de elas lembrarem, mas coisas que fizeram parte de suas vidas, e ela mesma, sendo uma mulher, levou cada uma daquelas mulheres a se abrirem com sinceridade. Também, falando-se de sinceridade, achei bacana a preocupação da autora, que ela nos menciona no livro, de selecionar relatos que lhe parecessem muito fieis, sem qualquer um que parecesse fantasioso ou não verídico.
Porém, como já mencionei, as narrações curtas de cada mulher, trazendo então muitas para comporem o livro, me pareceram um álbum de recortes, ou um quebra-cabeças, e isso me prejudicou na fixação do conteúdo, pois, por exemplo, quando estamos em um lugar, e vemos muitos rostos, não gravamos todos, apenas alguns nos marcam e ficam, os outros, apesar de importantes, acabam sendo perdidos no turbilhão de nossas mentes, e é exatamente o que aconteceu nesse livro, embora cada relato seja tão emocionante que eu gostaria de guardá-los, um por um na minha memória. Também, o fato de os nomes russos serem bastante diferentes, acaba não contribuindo para que nos lembremos deles com tanta facilidade.
O livro traz uma grande diversidade de "personagens da vida real", desde aquelas que queriam ir para a guerra, até aquelas que não queriam ir e foram obrigadas pelas circunstâncias e nos mostra aquelas que encontraram, durante a guerra, tempo para o amor, para a amizade, e principalmente para a solidariedade humana, que não tem limites e em tempos de maior necessidade fica ainda mais perceptível.
A narração da obra é em primeira pessoa, onde podemos acompanhar os relatos de cada mulher. O livro é dividido em capítulos, com diversos temas, e dentro desses capítulos existem diversos relatos. Além disso minha leitura foi realizada em ebook e não encontrei erros.
Recomendo o livro para aqueles que gostam de livros com um tom de reportagem, e também para quem gosta de acompanhar relatos sobre o tema segunda guerra e sobre heroínas e humanidade.
site: Resenha postada originalmente em: http://rillismo.blogspot.com.br/2017/02/resenha-guerra-nao-tem-rosto-de-mulher.html