Coruja 30/03/2011O ano deve ter sido 2002 ou 2003. Eu estava no segundo ou terceiro ano e tinha aula à tarde - e, por conseqüência, tinha de almoçar no colégio, pois não havia tempo de ir para casa. Invariavelmente, eu acabava passando pela delicatessen para providenciar a sobremesa (as bombas de chocolate deles eram fantásticas!) e, um belo dia, quando estava a cumprir meu ritual chocólatra, notei que tinham aberto uma livraria no final do quarteirão.
Não é preciso ser um gênio para descobrir o que aconteceu depois, não é mesmo?
Foi no exíguo tempo que eu tinha de sobra do almoço (para ser sincera, exíguo era o tempo dedicado ao almoço, que eu praticamente aspirava para poder correr para a livraria...) que dei de cara com Pratchett pela primeira vez. Lembro de olhar para as capas dos livros e me perguntar o que havia por trás delas. De colocá-los na pilha já crescente de volumes nos meus braços. De me sentar numa das mesinhas da livraria e começar a folheá-los. De perder completamente a hora da aula enquanto mergulhava cada vez mais fundo no mundo criado pelo cara de chapéu.
Sim, eu acredito que tenha perdido aula de biologia naquela dia. Ou talvez de redação, se era segundo e não terceiro ano do colegial. Não tenho bem certeza. Mas, vamos encarar, logo eu, que era uma aluna exemplar, nunca faltava aula nem chegava atrasada, era a queridinha dos professores... Vejam no que ler Pratchett me transformou!
Bem, alguns sacrifícios são sempre necessário, não é mesmo? Fora que se foi biologia que perdi, não posso dizer que realmente lamento a perda. E ganhei algo realmente incrível em troca: a oportunidade de conhecer o mundo absolutamente fascinante de Discworld.
A Cor da Magia e A Luz Fantástica são os dois primeiros volumes da série, e os únicos que realmente precisam ser lidos em seqüência, já que um começa exatamente de onde o outro termina. Neles, somos pela primeira vez apresentados a mundo do Disco - com seu formato de pizza, ele repousa sobre o lombo de quatro gigantescos elefantes que, por sua vez, se apóiam na carapaça da Grande A'Tuin, um quelônio de proporções astronômicas que viaja pelo universo seguindo um caminho e objetivo que a nós só cabe tentar adivinhar.
Dessa adivinha, contudo, depende o destino do mundo... ao menos nesses dois específicos volumes.
Antes, porém, que possamos passar às importantes questões fisico-filosóficas-religiosas de para onde vamos, quem somos, essa tartaruga é macho ou fêmea e o que é aquela estrela vermelha de aspecto apocalíptico aproximando-se no horizonte, temos de fazer algumas apresentações.
Conheça Rincewind - e marque bem esse nome, por que ainda vai ouvi-lo muitas vezes ao cuidar da história do Disco. Rincewind é um mago, numa acepção bastante ampla e generosa da palavra. Ele foi estudante da Universidade Invisível - lugar onde os magos estudam para serem... bem, magos - de onde foi expulso por sua total e completa incompetência no campo da magia.
Claro que existe uma explicação bastante lógica para isso; Rincewind não é assim tão inútil quanto se possa pensar ao dar de cara com a criatura pela primeira vez. Ocorre que quando ainda era um jovem e inesperiente aprendiz, aceitando um desafio proposto amigavelmente por seus colegas, ele entrou em uma certa sala proibida e folheou um certo livro proibido: o Oitavo, onde estão escritos os oito mais poderosos feitiços de Discworld.
Quando Rincewind começou a mexer no livro, um dos oito decidiu simplesmente fugir para a cabeça do pobre rapaz. Todos os feitiços que Rincewind pudesse já saber simplesmente fugiram apavorados de sua cabeça e nenhum outro quis ser aprendido desde então. Dessa forma, Rincewind é um mago capaz de recitar um único feitiço... mas esse único feitiço é um dos Oito e ninguém sabe exatamente o que ele pode fazer.
Curiosamente, toda vez que Rincewind encontra-se em perigo mortal - e isso acontece com uma razoável freqüência a despeito da covardia do cara - o feitiço tenta se dizer. Felizmente, por ser um grande covarde, Rincewind é um perito em escapadas, fugas e, de uma forma geral, sair correndo com a maior velocidade possível na direção oposta ao do monstro faminto.
É quase um milagre que ele consiga escapar de todas as enrascadas em que acaba caindo. Ou, bem, para dizer a verdade, é um milagre, já que Rincewind é um favorito da Dama, uma das deusas do panteão do Disco, associada à sorte. Ser um favorito da Dama significa assim ser uma peça do complicado jogo de tabuleiro que ela tem com outros deuses e é por isso que sempre que Rincewind escapa por um triz de ser comido/esmagado/incinerado/afogado/flechado/cair no abismo universal e passar o resto da existência flutuando no nada, você escuta o som de dados rolando ao fundo.
Claro que sendo o covarde que é, não é Rincewind quem dá início à cadeia de eventos que o fará encontrar com Morte (de forma também bastante literal) inúmeras vezes e culminará com evento da estrela vermelha que um belo dia surge no horizonte do Disco e lança o mundo numa onda de pânico enquanto se aproxima cada vez mais.
É aí que entra Duasflor.
Duasflor é um turista - o primeiro turista do Disco. Originalmente um contador no Continente Contrapeso, um belo dia Duasflor decidiu que queria sair e conhecer o mundo. Comprou então a Bagagem - um baú de madeira cheio de personalidade - encheu-a de moedas de ouro e partiu para Ankh-Morpork, um lugar onde pessoas como ele têm uma expectativa de vida muito, muito baixa.
Por sorte Duasflor conheceu Rincewind quase que à sua chegada. Todo aquele espaço vazio na cabeça do mago serviu para que ele fosse muito bom em aprender novas línguas, de forma tal que ele parece ser o único cidadão da boa cidade de Ankh-Morpork capaz de se comunicar sem problemas com o turista.
Assim, Duasflor contrata Rincewind como seu guia, que, tão logo recebe suas primeiras moedas de ouro, tenta fugir - para então ser capturado e levado à presença do patrício, a pessoa que governa a cidade.
É bastante óbvio de um ponto de vista econômico-político que o bem-estar e satisfação de um turista - especialmente um que tem um baú de moedas macicças de ouro - devem ser preservados. Assim, o patrício lembra a Rincewind que é seu dever, como cidadão consciente e responsável de Ankh-Morpork velar por Duasflor pois, do contrário, ele pode não viver o suficiente para ver o sol nascer no próximo dia.
E assim começa a jornada de Rincewind, Duasflor e a Bagagem pelo Disco, que inclui, entre outros cenários e eventos:
1. uma legítima e bastante ruidosa briga de bar;
2. uma cidade inteira pegando fogo;
3. uma deliciosa incursão pelo templo de uma criatura no melhor estilo lovecraftiano que não se alimenta, provavelmente, há alguns séculos;
4. uma visita a um covil de dragões;
5. quedas livres de alturas mortais, incluindo da borda do mundo;
6. resgate de virgens donzelas ao lado de Cohen, o Bárbaro, o maior herói vivo (relativamente) do Disco e, é claro que não podemos esquecer...
7. o fim do mundo.
No caminho você pode se deparar com uma conspiração para tomada do Poder Total, incluindo diversas e dolorosas formas de tentativa de assassinato, e um bibliotecário que tem uma predileção especial por se pendurar nas estantes da biblioteca e comer bananas.
E isso tudo é apenas nos dois primeiros volumes da série. Vocês conseguem imaginar o que pode vir a seguir?
Em tempo: esses livros foram adaptados para a televisão em dois episódios. Recomendado, claro... e prestem atenção no ator que faz nosso inocente Duasflor. Ele não é familiar?