Peregrina 01/09/2020
Para melhor apreciar A Divina Comédia
A fim de obter um melhor proveito desta obra literária monumental, é preciso deixar-se orientar por algumas perguntas, quais sejam:
1) Por que Dante escreveu a Comédia? Ou, o que ele queria dizer com esta obra?
2) Por que A Divina Comédia é importante? Ou, o que faz dela uma obra atemporal?
3) Como a Comédia se relaciona com os tempos em que vivemos?
Pois bem. Para responder ao primeiro questionamento, é necessário ter em mente que A Divina Comédia é uma obra que, a todo tempo, ressalta o fato de que nós temos que agir enquanto ainda estamos vivos, ou seja, as nossas atitudes presentes determinarão o nosso futuro. Parece algo óbvio, mas vivemos em uma sociedade em que as responsabilidades são cada vez mais empurradas para longe, para o amanhã. Principalmente entre os jovens, há a sensação de que esta efêmera passagem terrena durará para sempre. Mesmo em um cenário pandêmico pelo qual estamos passando, as pessoas não refletem muito sobre o pós-morte, ninguém nunca acredita que chegará a sua vez de partir desta vida e, pelo que Dante dá a entender, em seu tempo não era tão diferente.
Dessa forma, Dante, principalmente no Inferno, chama a atenção para os pecados que, cometidos em vida, levaram aquelas pessoas a estarem ali, demonstrando a necessidade de arrependimento, pois a sociedade de seu tempo não era melhor do que os que, tendo pecado gravemente no passado, agora pagavam duras penas no Inferno. Mesmo no Purgatório, quando o autor ressalta as almas dos penitentes tentando se redimir de algum modo pelos pecados cometidos antes de se arrependerem durante sua passagem na Terra, ele também reforça que aquelas penitências podem ser reduzidas pelas orações dos vivos. Então Dante, em todo momento, faz um contraste entre os que já faleceram e os que estão vivos, sendo que estes últimos ainda têm tempo de arrependerem-se de seus pecados e voltarem seus olhos para a Cruz, além de ajudar os que não mais podem mudar sua realidade por meio das orações em favor das almas. Faça a elas o que você gostaria que fizessem a você, pois depois que terminar de fiar o fio da vida, ou seja, falecer, não haverá muito que fazer.
Para reforçar seu argumento, Dante salienta que a morte pode chegar quando menos se espera por intermédio de inúmeros exemplos de falecimentos precoces, inesperados e trágicos retratados em toda a obra, talvez até para provocar no leitor de modo sensorial o impacto que teria acerca da necessidade de se arrepender e cultivar as virtudes teologais. Para tanto, o Dante-poeta exibe todo o seu talento com suas descrições vívidas dos cenários conhecidos por Dante-personagem a ponto de, em algumas ocasiões, chocar o leitor tamanha a expressividade de suas palavras, especialmente no Inferno.
Então, respondendo ao primeiro questionamento, creio que o objetivo principal (ou, pelo menos, um dos principais) de Dante foi realçar a necessidade da sociedade em que ele estava inserido se arrepender de seus pecados antes que fosse tarde demais, pecados esses que não eram menos piores do que aqueles dos que já estavam condenados naquele instante no Inferno. Tampouco deveriam esperar muito para mudar o rumo de suas vidas, pois, mesmo no Purgatório, embora a perspectiva fosse melhor do que uma eternidade de condenação ainda assim, guardava duras penitências para os que se arrependeram tarde demais. Por isso eu creio que A Divina Comédia é muito mais do que um texto esteticamente belo, tem um objetivo cristalino que não pode ser olvidado hoje, mais de 700 anos após ter sido escrito. Não é por acaso que, quando Dante encontra com Beatriz no Paraíso Terrestre, ela avisa o poeta enfaticamente para que ele se lembre de tudo aquilo que está vendo a fim de que, quando voltasse para a Terra, a mensagem possa ser transmitida às pessoas que caminham a passos largos para a perdição e ele mesmo não se desvie do caminho da virtude e da Salvação.
Vale lembrar que esta era uma época de muita hipocrisia em que as pessoas iam à igreja participar do sacramentos e viviam uma vida moralmente reprovável. A própria Igreja, segundo a concepção do autor, havia se desvirtuado de seus propósitos. Era um momento de enorme turbulência política e religiosa e Dante mostra que, mesmo antes da Reforma Protestante, a Igreja Católica Apostólica Romana já não era Católica (universal) há muito tempo, sustentada por papas praticantes do pecado da simonia e imorais. Além disso, foi mais ou menos nessa época que o papado ficou dividido entre Roma e Avignon. Assim, A Divina Comédia também funciona como um alerta para a própria Igreja que, maculada, devia voltar o olhar para Cristo e para a Eternidade em vez de priorizar disputas terrenas e politicagens efêmeras. Eu me pergunto o que Dante diria da Igreja Católica de hoje...
Passando ao segundo questionamento norteador, tentaremos responder por que a Comédia de Dante é importante ou o que faz dela uma obra atemporal, o que ela reflete. A minha resposta, aparentemente simples, é: o Céu, as coisas gloriosas que hão de vir. A partir daí, podemos destacar: a) A importância teológica de olhar para o Céu/Paraíso, que é trazer esperança para as pessoas, especialmente aquelas que estavam tão inconformadas quanto o próprio autor, além de alimentar a fé e estimular a caridade (virtudes teologais e também as cardeais); e b) Alertar aqueles que, por outro lado, não estavam atentos para o que estavam acontecendo e viviam de maneira desregrada. Dessa forma, recordar a existência do Céu e do Inferno poderia despertá-los para uma vida de retidão a fim de não perecer pela eternidade. A relevância de trazer à memória das pessoas essas noções de Céu, Inferno e Eternidade permanece até hoje, se não for ainda mais necessária. Daí a importância e a atemporalidade d'A Divina Comédia.
Ademais, o texto de Dante continua pertinente se tivermos em vista o próprio aspecto literário da obra. O autor escreveu os tercetos, a rima, a sonoridade e a métrica perfeitos. Isso só ocorreu porque ele queria refletir a perfeição celestial. Na literatura hodierna, não há absolutamente nada que se compare à grandeza dos versos dantescos. À medida que os séculos passaram e quanto mais o homem se distanciou do Eterno, do Divino, pior ficou a literatura, as artes, a música e a arquitetura e não é coincidência. Quanto mais o homem se distanciou de Deus e passou a refletir a si mesmo, mais horrendas foram as produções artísticas, musicais, arquitetônicas e literárias. Não serei politicamente correta aqui. Tive a oportunidade de contemplar ao vivo os afrescos no teto da Capela Sistina, cujas imagens podem ser facilmente encontradas na Internet, e digo com tranquilidade: toda a produção artística atual não se compara àquela que era voltada ao Divino. Compare a majestade das antigas Catedrais que tentavam alcançar os céus e a feiura das edificações mais recentes, repletas de ângulos retos e completamente inexpressivas. Ouça uma Sonata de Beethoven e, em seguida, qualquer música que esteja entre as mais ouvidas no país e reflita sobre o porquê de a primeira ser tão superior à segunda em complexidade, emoção e, sobretudo, beleza. A resposta é clarividente quando contrapomos literatura contemporânea e A Divina Comédia: o homem rejeitou a Deus e amou a si mesmo e, como consequência, tudo o que produziu a partir de então passou a espelhar a podridão e a decadência de sua alma. Quando o homem retratava a glória do que é Eterno, criava obras, de certa forma, eternas, perfeitas.
Finalmente, respondendo ao terceiro questionamento norteador, A Divina Comédia se relaciona com a atualidade, com os tempos em que vivemos, na medida que a sociedade atual precisa tanto de um despertar quanto a sociedade florentina dantesca precisava em 1300. Mesmo não acreditando em algumas doutrinas trazidas por Dante, como a existência do Purgatório, a mensagem principal do autor italiano ainda precisa ser difundida: esta vida é uma passagem e existe uma eternidade à espera. O que define o destino é o que se faz com a vida agora. O homem nunca esteve tão carente de virtudes, nunca houve tanta necessidade de se voltar ao Eterno como há hoje. Assim como a comunidade em que Dante estava inserido, só que em maiores proporções, nossa sociedade está cada dia mais afundada em seus próprios prazeres, no egoísmo, na arrogância e em seus pecados de imoralidade, falsidade e falta de fé.
Desse modo, A Divina Comédia é uma obra extremamente significativa, atual e que importa. Importa porque lembra seus leitores a urgência de voltar o olhar para Deus, tanto devido aos exemplos trazidos no livro (de santos e condenados) quanto com a sua beleza intrínseca que reflete a glória do Criador. E o leitor, mesmo os mais céticos, hão de apreciar a leitura, por mais trabalhosa que seja, porque dentro de todos nós há um desejo pelo que é belo. Como diria C.S. Lewis, dentro de nós há um anseio pelo lugar de onde toda a beleza veio, então nossas almas reconhecem tudo o que deriva desse mesmo anseio, que é o que move o cristão e dá esperança à humanidade.