Vinícius 04/01/2017Um livro sobre aprendizado e conhecimento - e como lidamos com issoÉ um lugar-comum dizer que escrever uma resenha de contos nunca é fácil, mas essa é a mais pura verdade, ainda mais quando os contos não têm nenhuma ligação entre si. Ou será que têm?
Ler História da Sua Vida e Outros Contos foi uma experiência completamente diferente na minha vida, em vários aspectos. Apesar de já ter lido Asimov antes, nunca havia entrado em contato com uma ficção científica mais profunda, mais hardcore, e, principalmente, que tratasse de temas tão variados que me fizeram questionar se o livro era FC, fantasia, ou se eu simplesmente poderia colocar tudo numa caixinha chamada ficção especulativa”.
A aposta da editora Intrínseca, a meu ver, se mostrou muito acertada, principalmente aproveitando o “hype” do filme A Chegada, baseado no conto supracitado. No entanto, acredito que nem todos irão apreciar esta obra, tampouco o famigerado conto, e ela pode se tornar algo de nicho, o que seria perfeitamente normal.
A Torre da Babilônia
"– Vivemos na estrada para o céu, todo trabalho que fazemos é para estendê-la ainda mais. Quando deixarmos a torre, vamos pegar a rampa de subida, não a de descida."
O primeiro conto trata de uma visão diferente do conto bíblico sobre a Torre de Babel. Aqui, acompanhamos um minerador, Hillalum, que foi contratado para subir a torre e escavar a abóbada do céu.
Este conto de abertura me pegou de surpresa, pois eu esperava só ficção científica com equipamentos tecnológicos, alienígenas e afins. Mas não, em vez disso, vemos um mundo antigo, bíblico, em que questões físicas são manifestadas e percebidas pelos personagens: embora eles não saibam explicá-las (o narrador trata de fazê-lo), sabem utilizá-la a seu favor. É o homem moldando a natureza ao seu redor.
Entenda
Um homem é submetido a um fármaco experimental para salvá-lo do coma, mas essa droga acaba por aumentar a sua inteligência ilimitadamente, superior a de um supercomputador.
Este para mim foi o conto mais inquietante do livro, pois, além da narrativa acelerada, mostra uma pesquisa bem engenhosa de Ted Chiang: desde questões psicológicas, a termos técnicos de computação – formação do autor –, medicina e até mesmo poesia!
Esta é uma narrativa em 1ª pessoa com muito fluxo de consciência e muito descritiva, mas que me agradou. Aprendemos quase que junto com o narrador (se é que é possível), e é necessária muita atenção para acompanhar o crescimento gradual da sua inteligência (a propósito, achei a técnica empregada pelo autor simplesmente genial e natural).
Divisão por Zero
Uma doutora em matemática sai do sanatório e descobre uma forma de provar que a aritmética é inconsistente. Paralelo a isso, seu marido, um biólogo, que também sofreu com problemas no passado, vê seu casamento se desmantelar.
Achei este o conto mais complexo da coletânea. É como se o autor aplicasse alguma teoria matemática dentro da própria teoria literária, na forma com a qual escreve. Não só pelas suas divisões de tempo, mas com a sua estrutura narrativa. Ele nos cativa com o biólogo e a sua preocupação com a esposa, ao passo que nos angustia com a busca dela pela fórmula matemática.
História da sua Vida
Alienígenas chegam ao nosso planeta e tentam se comunicar conosco. Para isso, são recrutados inúmeros profissionais para decifrar a linguagem deles. Acompanhamos a Dra. Louise Banks em seu processo de aprendizagem, e como isso muda a sua vida e a sua visão.
Talvez o mais icônico do autor, graças ao filme. Acho muito difícil falar sobre essa história sem revelar qualquer coisa importante do enredo, mas posso dizer que é sobre aprendizado e escolhas. A interpretação do leitor sobre o que isso quer dizer estará condicionada à sua interpretação da história. Um conto inteligente, cativante e muito emocionante.
Obs: sou apaixonado tanto pelo filme quanto pelo conto, embora eles se difiram em sua “motivação de roteiro”. No filme, temos uma ameaça militar; no livro, não há nada a não ser o aprendizado.
Setenta e duas letras
Em uma Inglaterra alternativa, a humanidade desenvolveu as técnicas de desenvolver Golens, autômatos de argila descritos na crença hebraica. Acompanhamos um Robert em busca de um Nome que poderá ser empregado nos seres humanos e evitar sua extinção.
Este é último conto nos moldes dos anteriores, com narrativa linear e diálogos. Comparado aos outros, é o mais descritivo e pesado, destoa muito das técnicas anteriores e acaba deixando o famigerado “show, don’t tell”* de lado.
Depois de vencer as primeiras páginas, a história começa a ficar interessante. A questão humanitária comum à FC se vê nas últimas 10-15 páginas, assim como todo o clímax. O final é interessante, mas carregado de termos técnicos que fogem dos meus conhecimentos, mas que não me afastaram do sentimento que o autor queria empregar.
A Evolução da Ciência Humana
Este é mais curto de todos, e também o mais diferente, mostrando a versatilidade do escritor. Neste, ele simula uma reportagem de uma revista científica, explicando uma situação específica em um futuro distante em que se questiona a inteligência humana em relação à sua dificuldade para se comunicar com meta-humanos, sendo estes uma criação deles. É bem interessante observar a forma narrativa de Ted, neste caso, embora o conto em si não agregue muito a leitores em geral.
O Inferno é a ausência de Deus
Anjos surgem na Terra o tempo todo, mas nunca trazendo uma mensagem específica. Em vez disso, toda vez que aparecem, algumas bênçãos e algumas desgraças acontecem àqueles que estiverem próximos. Acompanhamos a história de Neil, que perdeu a esposa em um evento angelical, e a sua tentativa de amar a Deus, ou pelo menos ser merecedor de ir para o Céu e ficar ao lado de sua amada.
Este conto trata de causa e efeito, utilizando-se de uma crença religiosa. Pode não agradar quem tiver convicções muito fortes, por isso não recomendo a esse tipo de leitor. Aqui, Ted adota a narrativa pura, sem diálogo, com micro passagens de tempo, como se fossem várias crônicas de cada personagem (são três, mas apenas um é o principal); uma técnica não muito usada hoje em dia, pois pode deixar a leitura muito cansativa e muito afastada do leitor. No entanto, Chiang executa bem e tem uma narrativa fluida e atrativa.
Uma pequena observação: embora o humor não seja o objetivo do autor, fiquei com uma sensação de estar lendo um texto do Terry Pratchett em alguns momentos. Ainda assim, o final nos faz pensar bastante.
Gostando do que vê: um documentário
Uma técnica – a caliagnosia – foi criada para que as pessoas não vissem mais defeitos nos rostos. Ou seja, não existe mais o conceito de beleza, então todos se tratam não mais com base na aparência.
Este conto é escrito em forma de documentário, contendo a narrativa de vários “entrevistados”, desde pessoas comuns, a especialistas que explicam o funcionamento da técnica e a sua reversão. É mais um conto que mostra a versatilidade do autor, e realmente me fez sentir como se estivesse vendo um documentário (acho que por isso não gostei muito).
Li em alguns blogs e comentários que os contos desta coletânea não se comunicam, que são muito diferentes entre si. Eu discordo. Todas as histórias, a meu ver, tratam de conhecimento e aprendizagem: de como o conhecimento nos afeta, e de como grandes descobertas podem ter um impacto sobre quem as descobre.
Os contos terminam sempre com o final em aberto, uma técnica muito empregada para esse tipo de narrativa (e que muito me agrada). Isso não é preguiça do escritor, é uma forma de permitir que o leitor tire suas próprias conclusões, formule suas próprias conjecturas, além de mostrar que a história não acaba necessariamente ali, e o que ele nos mostrou é apenas um recorte.
No geral, a coletânea é muito boa, embora eu tenha ficado um pouco incomodado em alguns contos. Alguns dirão que esta é uma obra para “pseudointelectuais” que fingem entender o que há nela, e eu acho esse tipo de comentário muito mesquinho. A verdade é que o autor gosta de empregar muitos termos técnicos e traz muita carga pesada para sua narrativa, mas, no fim, ele fala da natureza humana, de quem somos e de como lidamos com isso.
Site: http://intocados.com/index.php/literatura/resenhas/880-historia-da-sua-vida-e-outros-contos-ted-chiang
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