Raikov 25/09/2024
Geralmente, eu sempre reservo o mês de setembro para leituras voltadas à história do Brasil, pois sinto que existe uma atmosfera própria no mês da independência. Este livro é muito importante para mim, porque o encontrei entre os pertences do meu avô logo após ele falecer.
O livro começa com o autor mencionando o quanto a história é esquecida em nosso país. Locais históricos, como o centro da cidade, que foram palco de eventos importantes, acabaram caindo no esquecimento. Um exemplo é a Praça Quinze, onde ficava o Paço Imperial. Hoje, esse local é tratado como um prédio velho, quase em ruínas, que às vezes é usado para exposições transgressoras que pouco honram a origem monárquica do lugar. Em uma passagem, o autor relata que a sala do trono, que antes abrigava uma das cortes mais religiosas da Europa, estava tomada por imagens obscenas que satirizavam a Igreja Católica. A falta de apreço e entendimento histórico por parte de nós, brasileiros, foi o que motivou o autor a escrever "1808".
O livro narra toda a trajetória da fuga da família real portuguesa até seu retorno, por volta de 1821. É muito interessante conhecer as condições precárias da viagem, com infestações de piolhos, falta de água e comida. Mesmo não sendo um livro de terror, é aterrorizante imaginar o que os portugueses enfrentaram durante a travessia do Atlântico. Em várias ocasiões, me peguei imaginando estar entre as embarcações escuras, tendo que comer carne seca e beber água pútrida para sobreviver.
Ao chegar à colônia, o livro descreve a recepção a Dom João e a vida da nobreza. É realmente cômico como as pessoas da época tinham costumes bizarros, como fazer fila para beijar a mão do rei ou usar escravos para carregar baldes de dejetos pelas ruas. A higiene não era algo presente na cidade, que estava repleta de ratos e doenças, segundo os relatos.
Um capítulo que chamou muito a minha atenção, e que pareceu quase um prelúdio para outra trilogia do autor, foi o que abordava o tema da escravidão. Muito se fala sobre as atrocidades ocorridas nas primeiras décadas do século XX, mas muitos esquecem os horrores da escravidão. Como brasileiro, eu sabia que era algo terrível, mas sempre com uma memória distante, algo que "simplesmente aconteceu", não como um horror tão vivo quanto os genocídios recentes. Quanto mais lia, mais horrorizado eu ficava ao perceber que a mesma cidade onde vivo foi palco de um dos mecanismos mais violentos já criados pelo homem. Escravos eram chicoteados sem pudor, os doentes eram jogados em valas rasas sem cerimônia, e houve casos em que traficantes de escravos afundaram navios cheios de pessoas. Não há como não se compadecer diante de uma marca tão profunda em nossa história.
Nos capítulos posteriores, aprendemos sobre a corte portuguesa e, talvez, seu protagonista: Dom João VI, um regente gordo e bonachão, covarde por natureza. Ele deixou Portugal completamente desprotegido, com medo de enfrentar as tropas francesas. Apesar de ser retratado como uma figura ligeiramente patética, não se pode negar a importância de suas ações para o nascimento do Brasil. Foi ele quem abriu os portos, trouxe entusiastas da arte e da arquitetura, e expandiu o conhecimento científico da antiga colônia. Um personagem deveras complexo — por um lado, um estadista talentoso; por outro, um rei ridicularizado pelo tempo.
Outro personagem digno de nota é o arquivista Marrocos, que, durante todo o período em que a família real esteve no Brasil, trocou cartas com seus familiares em Portugal. No início do livro, ele tecia críticas severas ao país tropical, mas, ao longo dos anos, foi se convertendo em um digno brasileiro. Inclusive, casou-se com uma nativa e teve uma filha fora do casamento. É através das cartas deste ilustre acadêmico que vemos como era a vida há 200 anos.
"1808" trouxe-me sentimentos mistos. Por um lado, revolta ao saber que, em 200 anos de história, muitos dos problemas da época da coroa ainda persistem, como corrupção e violência desenfreada. Mas, talvez o que mais me incomode seja o total apagamento da história de nosso país, sobretudo do Rio de Janeiro, no cenário cotidiano. Quem caminha pelo centro da cidade, entre os mendigos, o cheiro de urina e os prédios altos, mal imagina que ali passaram reis, cientistas, arquitetos e artistas que tentaram construir um Brasil mais civilizado. Por outro lado, vejo que muita coisa boa foi construída a partir da vinda da família real, como a criação da Biblioteca Nacional, a unificação da polícia e o estabelecimento de construções, ainda que frágeis, que contribuíram para a unidade do território brasileiro.
"1808" é um livro essencial para quem deseja uma introdução acessível e bem documentada sobre a vinda da corte portuguesa ao Brasil. Talvez o melhor livro brasileiro que li em 2024. Nota: 10/10.