spoiler visualizarSouls.Like 22/08/2023
Bom livro.
Como estou criando, eu acho, o hábito de escrever resenhas sucateadas sobre as leituras que termino, vou falar sobre Um gato chamado Borges.
A trama é a seguinte: um sujeito chamado João Meireles, que perdeu os pais numa enchente em sua cidade, e agora, sem nem ninguém por ele, resolve ir até São Brandão, cidade fictícia litorânea, a trabalho. Lá é a capital do suicídio e o sujeito quer saber o por quê.
Durante a leitura, lembrei de A Fonte Q, de Dárcio Cintra, que é um livro com outro livro dentro de si. Um gato chamado Borges, porém, estabelece um loop dentro dessa ideia, o qual não vou revelar por motivos de spoilers sobre o final da história. A experiência é bem bacana e sugestiva.
A escrita da história é muito boa. Durante os trechos da entrevista de Arturo com João Meireles, o livro é narrado no presente, o que dá uma baita força à narrativa, e é narrado no passado ao falar da experiência vivida por João. Bem bacana o recurso, mas senti uma pontinha de decepção, porque o estilo da escrita, direto, seco e rápido, combina demais com o tempo verbal presente e ganha uma força magnética. Senti que essa força se perde um tantinho quando a narrativa entra no passado, mas isso é frescura minha.
João Meireles é um protagonista bem interessante de se acompanhar. Com baixa autoestima, pensamentos pejorativos sobre si mesmo e seu peso, mostrados muito bem através da narração que se mescla ao personagem narrado, adotando seus trejeitos, modos de falar e etc, o cara é uma figura. De longe o personagem mais interessante de se acompanhar, o que é excelente, mas também um pouco decepcionante, dado a vontade que tive de conhecer mais a fundo outros personagens. Isso até me fez criar um ranço de uma personagem chamada Camile, que de início gostei muito, mas depois me deu ganas de atirá-la no mar. Se tivesse tido mais um tempinho com ela durante a história, creio que teria mantido a afeição.
Durante toda a história, o livro tem o ar de um romance policial, depois envereda bastante no drama, transita para o mistério e se encerra com uma sugestão de sobrenatural. A onda de suicídios está ligado a um sujeito chamado V, criaturazinha que, depois de um tempo, passei a achar insuportável, e mais ainda os nativos da região por criarem todo um misticismo em torno desse sujeito, ao ponto de se recusarem a falar absolutamente qualquer coisa sobre ele. O cara nem ao menos aparece de fato na história e é detestável. Achei isso sensacional.
Eu gostei de como o livro constrói essa ligação dos suicídios em São Brandão com V e, ao mesmo tempo, mostra nas entrelinhas que, na realidade, não existe ligação alguma: as pessoas vêm e vão, e há fatores demais que podem levar alguém a tirar a própria vida. Uma pessoa só não causaria todo esse efeito dominó, e o livro também aborda, de leve, o fato de as ondas de suicídio ocorrerem apenas no inverno congelante do sul, período em que todos vivem do que conseguiram no verão e agora, quase sem trabalho, têm de lidar com si mesmos em tempo quase integral.
De todos os personagens que aparecem e dão indícios de flertar com o suicídio, apenas uma realmente tem V como motivação, enquanto a motivação dos outros são suas próprias questões internas, muitas vezes sem relação alguma com V. Ainda assim, a história mantém você numa nuance entre acreditar que V de fato pode ter alguma ligação com os suicídios e que isso não passa de conversa fiada. É evidente que, por ser um sujeito muito gente boa, extrovertido, que conversava com qualquer sujeito que passava na rua, as pessoas num geral se apegaram a V e, diante de seu suicídio, criaram uma espécie de mito acerca disso.
O gato Borges, ao meu ver, foi só uma pista falsa. Mal aparecendo no livro, ele tem zero relevância. Talvez dê algumas pistas a mais para quem tiver maior entendimento de simbolismos, coisa que o autor parece usar bastante.
Curti a leitura. Dá para notar que foi um livro difícil de escrever e é interessante sentir isso durante a leitura, ainda mais quando ele é tão direto ao ponto. Acho bem recomendável para todo tipo leitor. Só não recomendo esperar muito das relações entre personagens. Elas não são ruins, mas não se aprofundam muito. Acompanhamos muito mais os personagens centrais da trama sozinhos do que interagindo entre si. Quando interagem, é tão casual que não dá muito peso ao conjunto da obra. É interessante, mas não faz muito a minha praia.