O náufrago

O náufrago Thomas Bernhard




Resenhas - O Náufrago


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Valéria 01/09/2020

Eu me apaixonei pelo ser raivoso e absolutamente necessário que foi Bernhard ao ler Extinção, um tratado contra a dissimulação.

Não é diferente com o Náufrago, aqui ele provoca a desconstrução do mundo, do humano e da arte, num ritmo acelerado, descompassado, feroz. O ataque brutal a hipocrisia, desfaçatez e mesquinharias nos faz enxergar a raiva e a revolta como comportamentos aceitáveis num mundo doente.

Depois de Dostoiévski, nenhum autor me despertou tanto interesse e admiração quanto Bernhard, um gênio da vida real.

(...) Glenn tinha o maior apreço pela palavra náufrago e por seu significado; lembro-me bem; foi na Sigmund-Haffner-Gasse que o náufrago lhe veio à mente. Quando observamos as pessoas, só vemos mutilados, Glenn nos disse certa vez; mutilados interiormente, exteriormente ou ambas as coisas, é só o que se vê, pensei...
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Marker 10/05/2020

Talvez seja das leituras mais desafiadoras que já fiz. Gosto de acreditar que me interesso por personagens amargos e irritantes, mas nada consegue preparar para a dificuldade que é acompanhar a ladainha (até breve, menos de 150 páginas) desse personagem reclamando de sua relação com dois amigos próximos ao longo da vida, do espírito das cidades austríacas, do socialismo e do cristianismo, de uma vida erroneamente dedicada a arte, da impossibilidade da arte/da perfeição. É um conjunto absurdamente obsessivo e cansativo, posto que perfeitamente construído, de mazelas que apontam sobretudo para a vida de um certo Wertheimer, que se viu completamente paralisado desde jovem, quando ouviu um então estudante Glenn Gould executar perfeitamente as Variações Goldberg, e entendeu que suas aspirações estavam minadas. Se o perfeito existe, porque um mortal há de competir com ele?, pensa o protagonista que pensa Wertheimer. Completamente enervante, mas fascinante.
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Marise 05/05/2019

"Nosso náufrago é um fanático, disse Glenn certa vez; vive morrendo quase ininterruptamente de autocomiseração."
A narrativa de O náufrago, livro de Thomas Bernhard, marcada pela colagem - por parte do narrador inominável - de reminiscências, registra a trajetória de naufrágio dos três protagonistas.
Isolamento, fracasso e suicídio são elementos pontuais ao longo da história, acentuando o caráter de deriva em que se encontravam os personagens ao passo de suas vivências narradas na história.
Após uma primeira análise notamos que o livro, de modo geral, possui a presença marcante de pensamentos que esteticamente acentuam um caráter de (re)montagem para a narrativa, que se dá a partir dessas lembranças que constroem as cenas por intermédio da memória do narrador. Além disso, um dos pontos mais intrigantes se revela no fato de que as ações em si são poucas; inúmeras descrições de cenários, fatos e personagens ocorrem enquanto o narrador deu apenas um passo. Nesse sentido, a presença de ações funciona como pano de fundo para as elucubrações da voz narrativa, e também para alocar o leitor diante do tempo e do espaço do texto. Essa opção estilística do autor se acentua nas repetições constantes e no fluxo de consciência (também acentuado pela falta de parágrafos).
A atmosfera presente tanto nos espaços de ação quanto de memória nos coloca diante de um espaço de insulamento, que podemos entender como o sentimento constante de estar ilhado, ponto que nos fornece vasto campo de compreensão para a ideia de naufrágio e também nos inclina para uma espécie de metáfora marítima, na qual mergulhamos a fim de compreender as dinâmicas empreendidas pelos personagens.
O clima enigmático, as ações conturbadas e o perfil dos três amigos parecem sempre convidar o leitor a decifrá-los, a buscar respostas para as lacunas deixadas por suas confusões, por seus atos e por suas relações.Tal repertório remonta a amizade dos três personagens, pautando sua relação pelo clima de disputa e inveja, sempre pontuado pelo narrador, que faz questão de situar o leitor diante das problemáticas advindas da genialidade de Glenn Gould e de seu espírito de autodisciplina em contraste com o espírito depressivo de Wertheimer. Esse apontamento nos aloca na esfera discursiva da culpabilidade, do pessimismo, na abordagem da figura do outro como um culpado pelo próprio fracasso (o que nos aponta uma transferência do discurso da culpabilidade também); o outro é sempre o culpado, ora por ser o que gostaríamos de ser ora por nos fazer querer ser o que ele é. O fracasso, nesse sentido, é utilizado para fomentar e potencializar narrativamente a ideia de desespero e ruína, colocadas pelas memórias ao longo da trama. Nesse sentido, o livro nos volta para desvendar e remontar, através das lembranças, o que gerou a derrocada de Wertheimer, em seu ato de suicídio.
Dentro das características que remontam o caráter de náufrago de Wertheimer, podemos salientar alguns apontamentos que nos faz o narrador acerca das inclinações desse: achava o mundo repugnante, não gostava de viajar ou de se mudar, se achava infeliz, vivia sempre em recolhimento e com sinais de desgosto com a vida, já que "era a infelicidade humana que o fascinava". Seu comportamento se encaminha para a construção da metáfora náutica sob o ponto de vista da infelicidade, de uma depressão existencial, na experiência de um "memorialismo brumoso" que nos coloca a desvendar a névoa diante desses personagens à deriva.
O declínio de Wertheimer, segundo o narrador, foi conhecer Glenn, fato que afundou ambos no fracasso ao ver dado ao amigo o posto de gênio. O universo da música pertencente à tríade é o responsável por tecer grande parte das observações disponíveis nessa leitura: o caminho de cada um deles se deu em decorrência dessa relação conturbada entre a técnica, o amor e a vocação ao virtuosismo presente no discurso que caracteriza o grande músico, o virtuose. Essa espécie de racionalidade técnica, presente na construção de Glenn como gênio, nos indica a construção do virtuosismo pelo discurso do êxito, acentuando o clima de disputa e até mesmo a abordagem para o fracasso. A colocação de Gould, um personagem de renome biográfico, se torna ainda mais interessante e intrigante nesse sentido, já que sua biografia nos aguça a respeito dos (des)limites do caráter de gênio e suas imbricações, bem como o choque entre as esperas ficcional e real que tenciona a narrativa. É nesse contexto que Wertheimer aceita a designação de náufrago, por se perceber enquanto sujeito em declínio e fracasso, assumindo sua ruína.
É interessante salientar que a derrocada de Wertheimer é anterior ao seu encontro com Glenn; O narrador, ao nos contar suas observações sobre o amigo e suas relações, nos indicia quanto ao caráter intrinsecamente depressivo e existencialista de nosso náufrago. Entre os pontos que corroboram essa defesa, destacam-se sua relação abusiva com a irmã, a presença dos pais em sua vida, seu envolvimento com a dona da pousada e a amizade que cultivava com seus dois únicos amigos.
Isso nos faz pensar sobre a construção desses afetos ao redor de sua figura, sobre como Wertheimer se relacionava com as pessoas ao seu redor, sobretudo em sua relação com a irmã, marcada pela ideia de dominação do masculino sobre o feminino, exacerbando a crise parental e as nuances de suas relações de poder. Além disso, sua afinidade com seu amigo gênio prova sua constante fuga de si, na tentativa de sempre escapar de si mesmo através do outro, fato que se acentua na alocação de seu fracasso na figura de Glenn. Isso também ocorre em sua relação com a dona da pousada, por exemplo, já que ela se encontrava no espectro das “pessoas simples”, do qual ele tanto se distanciava e ansiava por compreender.
As constribuições filosóficas também são pontuais, sobretudo se pensarmos nas ideias dos autores citados, como Nietzsche e Schopenhauer, conhecidos pelo envoltório comum como autores niilistas e pessimistas. Um foco interessante recai sobre Nietzsche pela própria brincadeira narrativa da ideia de aforismo, modelo bastante usado pelo filósofo e também presente em Wertheimer: ambos se marcam aqui por suas máximas. Essas construções do caráter de Wertheimer fornecem sintomas sobre sua identidade, marcada pela ânsia de ser e dizer e pela frustração de não consegui-lo. Tal ponto é inclusive abordado por seu amigo e narrador sem nome: "o medo puro e simples de não ser levado a sério fazia de nosso náufrago um tagarela.". A verborragia, nesse sentido, se torna o ponto no qual percebemos que apesar de sua característica recolhida e infeliz, existia uma pulsão por algo que de fato não descobrimos: assumir a figura paterna, ser um virtuose, etc.
Todas essas observações nos fazem retomar a ideia de naufrágio como narrativa central, já que todas as relações presentes no livro nos inclinam para ela. É interessante pensar que em seu significado de dicionário a palavra naufrágio indica o afundamento, sendo o náufrago sua vítima. Todos os personagens situados na trama de Bernhard parecem ser vítimas de algum modo, parecem estar à deriva, e suas interações ao longo na narração parecem ilustrar seu estado. Ademais, as ações narradas nos apresentam o acidente e remontam esse afundamento. O narrador, nesse sentido, se afigura como um sobrevivente, incumbido de contar os infortúnios que o levaram até ali, que o levaram ao enterro de seu amigo. Wertheimer assume a postura de vítima derradeira do espetáculo, guardando em si o ato final da peça, o ápice do declínio, por ser um personagem marcado excesso; já nasceu náufrago e, nessa narrativa, "tinha apenas a própria morte nas mãos”.
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Renato 05/03/2018

A genialidade da inveja
Escrever um grande livro, uma obra prima é um feito de gênio, de um grande escritor. Escrever duas é um feito para poucos. Não há descrição ou nome para esta qualidade.

Quando você termina de ler ‘Extinção’, de Thomas Bernhard e acha que a grandiosidade de sua forma literária está esgotada, então você lê ‘O naufrágo’ e percebe que levou um grande soco na face de suas crenças. O mesmo estilo, a mesma forma, mas tem algo novo e igualmente genial em suas mãos.

Ambos os livros são políticos, fortes, carregados de um niilismo suicida e um auto-ódio, voltado principalmente contra o provincianismo cristão racista da Áustria, na concepção de Bernhard. Humor corrosivo, mau humor misturados nos mesmos parágrafos longos, num fluxo de ideias que gira elipticamente num crescendo cada vez mais denso. As ideias que vão se sucedendo surpreendentemente sem repetição, num sentido perfeitamente natural. Os livros de Bernahrd são de uma leitura densa, salpicada de reflexões e discussões significativas, que não permitem perda de foco. Muito Schopenhauer, Nietzsche entre outros. No caso de 'O náufrago', o livro inteiro se desenrola em um único parágrafo.


Estilisticamente os livros são próximos. Mas em termos de abordagem e discussão, espalham-se em direções distintas. Discutem inúmeros temas, mas cada um toma um sentido principal particular. Se em 'Extinção' o peso da memória e a negação da família e da origem cultural dominam, em 'O naufrago’ Bernhard visita o espaço da arte, da formação e da amizade. E principalmente da inveja. Trata-se da história ficcional do pianista Glenn Gould e dois de seus amigos e colegas de estudo de piano. O autor, anônimo, e um certo Wertheimer. Nas 234 páginas, o narrador descreve seus anos de estudo, de sucesso e fracasso (The loser = O náufrago) e enfim a morte como o resultado da construção de uma vida. Seu foco principal é a morte dos dois amigos, a de Glenn Gould, por causas naturais, e a de Wertheimer, num suicídio absolutamente significativo. Tanto na situação, na frente da casa da irmã, como no seu significado na relação com Glenn Gould.


Em 'O Náufrago' Bernhard confronta o destino desses três amigos continuamente. Na comparação entre os três, mais intensamente entre Gould, cheio de sucesso e Wertheimer, fracassado, misturam-se admiração, carinho e amizade. Até porque Glenn Gould desde os momentos mais intuitivos da formação musical era superior a todos, inclusive ao seu mestre, Horowitz. Todos os personagens estão repletos de infortúnios e deslocamentos, sem nenhuma margem para a felicidade.


A relação entre os três amigos é rica, mesmo que pareça impessoal na verborreia de Bernhard. A inveja talvez seja o tema central desta obra. Não a inveja como uma competição divertida e interessante, ou, por outro lado, como um conflito gerador de violência (e da admiração do leitor, por consequência). Na complexidade da inveja, um dos sentimentos mais estranhos e fundadores da sociedade, Wertheimer, assunto principal do livro, se nutre da sua inveja. Não se trata de torná-lo mau e pecador devido à inveja, afinal ela não pode ser pecado porque ela está na essência dos principais relacionamentos. Inveja-se o irmão, o filho, o sucesso alheio, a postagem maravilhosa e popular no Facebook. A inveja é o olhar do outro que nutre o movimento do indivíduo, é o ódio mas também é o amor. É Freud e é Bourdieu. A inveja é a construção da identidade. A inveja é o outro. Por isto que o grande enigma do livro é a razão do suicídio de Wertheimer. Por que teria se matado logo depois da morte de Gould. Na verdade, a mesma inveja que tornava Wertheimer infeliz era aquela que o mantinha vivo. A extinção de seu invejado é também seu fim. Qual seria então o sentido da sua vida após a extinção de seu outro. Em 'O Náufrago', a inveja é uma forma de amor.


Apesar do sucesso, Gould vive em isolamento e exercendo sua arte distante do público. Foi ele quem morreu de causas naturais, mesmo tendo se matado para as pessoas em nome de seu ego, sua arte. Já Wertheimer se matou (no momento errado, segundo Bernhard). Um suicida que justifica seu ato não pela solidão, mas pelo excesso de preocupação com o outro. Com a atenção daqueles que estão ao seu lado. Pode parecer um chavão, mas Gould não se importava, era autêntico, parecia desgarrado do olhar do outro, daí seu crescimento. Já Wertheimer, austríaco em todas as suas características, se inseria, se importava com o olhar alheio, gerando expectativa e infelicidade.



Mas Bernhard não gosta de navegar em águas rasas. A genialidade do artista, para Bernhard, não está num dom ou numa abstração que transformam homens em mitos, numa atitude de desprendimento e solidão frequentemente mitificados. A genialidade nasce de num parto muito mais doloroso. Está no abandono de sua identidade em detrimento da incorporacao da arte. No abandono da sociedade que no fundo despreza e valoriza. Mesmo que, aparentemente solitário, na verdade permaneça sentado enquanto artista numa jaula ou redoma, admirado sem perceber que está sendo percebido, dizendo não ao olhar do outro. Em outras palavras, sem se importar com a hipcrisia de prêmios, títulos e posições de aparente importância, outro tema recorrente na obra de Bernhard. Ele desprezava o meio intelectual e sua imortalidade nominada por decreto.


"As pessoas de caráter fraco resultam sempre em artistas também fracos, disse a mim mesmo; Wertheimer constitui uma confirmação inequívoca disso, pensei. Sua natureza era completamente oposta à de Glenn, pensei; Wertheimer tinha um conceito de arte, Glenn não precisava de conceito nenhum. Enquanto Wertheimer fazia perguntas constantes, Glenn não perguntava nada, nunca o ouvi formulando uma pergunta, pensei. Wertheimer sempre teve medo de ir além do limite de suas próprias forças, Glenn nunca chegou sequer a pensar que pudesse algum dia ultrapassar o limite das suas; Wertheimer, aliás, desculpava-se a todo momento, e por coisas que não eram motivo para seu pedido de desculpas, enquanto Glenn desconhecia por completo esse conceito; Glenn jamais se desculpou, embora tivesse constantemente motivo para tanto. Wertheimer sempre se importou com o que as pessoas pensavam dele; Glenn não dava o menor valor a isso , como de resto eu também não; assim como Glenn, sempre fui indiferente àquilo que o chamado mundo ao redor pensa de mim. Wertheimer se punha a falar quando não tinha nada a dizer, apenas porque o silêncio tinha se tornado perigoso para ele."


Bernhard não está dizendo que a arte tem que estar dissociada da realidade, que é uma entidade metafísica que carrega uma verdade além da falsidade dos valores mundanos. Esta é uma ilusão mundana, a transcendência de valores, a irracionalidade quase mística que é tudo aquilo que a arte não é. Mesmo que queira ser. Bernhard nos conduz para a alma do artista que se deixa tomar pela mediocridade dos valores mais irrisórios, a falsidade das aparência do mundo burguês da cultura alta e da vaidade que se basta em si mesma, ainda que falando pelos outros e aparentemente para os outros. A arte como construção de uma imagem, a dependência da aprovação da arte é o fim da arte em si mesma. A arte é tão pequena quanto a vida.

Outro tema comum em Bernhard, que une de certa forma 'Extinção' e 'O náufrago' é o desconforto com sua identidade, uma extensão da discussão anterior. O niilismo e o poder crítico de Bernard neste ponto se eleva e se torna difícil de ser digerido. Em 'Extinção' ele aborda a dificuldade em se aceitar sua origem, quando se enxerga nela uma raiz de deterioração. Assim ele revela seu ódio pela Áustria, a mentalidade preconceituosa e tacanha da nação, uma cultura baseada num cristianismo da separação, da superioridade e de desprezo violento pelo outro. O personagem de Bernhard se tortura remoendo os horrores de sua família, carregada de imposições e de violência por vezes velada, outras vezes explícita. Ele propõe desde as primeiras linhas a extinção de sua própria linhagem.

Em 'O náufrago' o tema da dificuldade com sua própria identidade é retomado. Mas outra identidade, a do intelectual, a do artista, do homem que tem uma boa fé racional que quer mudar o mundo. Nem com esta bem intencionada esperança Bernhard nos deixa. Ele questiona não a ação da intelectualidade, o valor do ato, mas o quanto a vontade de transformação nos redime e nos transforma em outro. Como se o artista e o intelectual ao fazer o bem deixasse de serem burgueses, mesquinhos e pequenos. Este intelectual quer transformar sua identidade através de atos. Sua ação é baseada numa vontade bem intencionada que nasce, muitas vezes, de uma culpa, de um desprezo pela própria origem e identidade. Bernhard não é nada conservador e muito menos critica qualquer ação canhota. Ao contrario, em outros livros, como em 'Meus prêmios', ele mostra que seu alvo não é criticar a vontade de transformação da sociedade, mas a hipocrisia da intelectualidade que mais se importa com o reconhecimento de seus atos do que com os atos em si. Prêmios, celebrações e fama. O foco de Bernhard em 'O náufrago' não é posicionar-se de forma certeira num local específico dentro da gama de posições politicas, mas expressar o vazio do individuo que a política não substitui. Ele só afirma que uma identidade ou uma atitude de empatia com o menos favorecido não é suficiente para transformar um indivíduo e movê-lo para aquilo que ele não é. A identidade está arraigada em todo desconforto só é resolvida com a morte, no momento em que a origem enfim pode ser apagada.


"Ele (Wertheimer), cuja casa ostentava um dos melhores endereços do centro da cidade, gostava de caminhar rumo a Floridsdorf, ao bairro dos trabalhadores, que ganhou fama por sua fábrica de locomotivas, rumo a Kagran. Kaisermühlen, onde moram os pobres mais pobres, ao assim chamado Alsegrund ou rumo a Ottakring, com certeza uma perversidade, pensei. Saindo pela porta dos fundos, vestido com roupas velhas, fantasiado de proletário, para não chamar atenção em suas expedições de reconhecimento, pensei. Postado horas sobre a ponte de Floridsdorf, ele ficava observando os transeuntes, olhando a água marrom do Danúbio, arruinada havia tempos pelos produtos químicos, onde cargueiros russos e iuguslavos navegavam rumo ao Mar Negro. Pensava então com frequência se sua grande infelicidade não tinha sido ter nascido numa família rica, pensei, pois dizia sempre que se sentia melhor em Floridsdorf e Kagran do que no primeiro distrito, que se sentia melhor entre as pessoas que moravam em Floridsdorf e em Kagran do que entre aquelas do primeiro distrito, as quais no fundo sempre odiara. Frequentava restaurantes na Praguerstrasse e na Brünnerstrasse, pedia cerveja e salsicha ao vinagrete e ficava horas sentado ali, ouvindo as pessoas, observando-as, até que o ar lhe faltava, por assim dizer e ele precisava sair, voltar para casa, naturalmente a pé, pensei. Por outro lado, vivia também sempre dizendo que era um equívoco acreditar que ele seria mais feliz se tivesse nascido em Floridsdorf, Kagran ou Alsergrund, pensei; que era um erro supor que aquelas pessoas tivessem ao menos um caráter superior às do primeiro distrito. Examinando-se melhor, disse, também os chamados desfavorecidos, os chamados pobres, os que ficaram para trás, revelaram a mesma falta de caráter, eram tão repugnantes e repulsivos quanto os outros, aqueles de cujo meio fazíamos parte e que só julgávamos repugnantes por este motivo. As camadas inferiores são tão perigosas para todos como as superiores, disse, agem com a mesma crueldade, devem ser evitadas tanto quanto as outras; são diferentes mas igualmente cruéis, ele disse, pensei.O assim chamado intelectual odeia seu intelectualismo e acredita que vai encontrar sua salvação entre os assim chamados pobres e desfavorecidos, que antes eram os chamados oprimidos e injuriados, ele disse; em vez de sua salvação, porém, o que ele encontra é a mesma crueldade, disse, pensei. Depois de ter ido umas vinte, trinta vezes a Floridsdorf e a Kagran, dizia Wertheimer com frequência, percebi o erro e passei a ir ao Bristol e a me concentrar naqueles iguais a mim. Vivemos tentando escapar de nós mesmos, mas fracassamos sempre nessa tentativa, quebramos a cara, porque nos recusamos a compreender que não podemos escapar de nós mesmos, a não ser por meio da morte."

Não adianta, não conseguimos fugir de nós mesmos. Mesmo quando nos consideramos inferiores e que os outros nos redimirão. Nossa identidade sempre será uma dor pois não conseguiremos ser os outros, ser como os outros, incorporar o que é dos outros. Viveremos através dos outros, mas nunca os possuiremos. Daí a irredutibilidade do nosso vazio. O peso que Bernhard nos escancara.

Obviamente Bernhard não termina por ai. Angustiante e desconfortável, pode ser considerado um dos maiores gênios da literatura do século XX, ainda que sua discussão não possa aliviar as angústias de nenhum leitor.

site: http://grinbaum.wixsite.com/leitorinsuportavel/single-post/2018/03/05/A-inveja-da-genialidade
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Arsenio Meira 25/08/2015

Condenação
Engana-se quem pensar ser esta obra-prima um breve romance incapaz de não enervar, desesperar, irritar, ao expor, com requintes de um tour de force cruel, algo de nós que julgamos repousar, imune, em águas submersas. Subestimar tal fato é sempre um terrível equívoco. O cardápio do livro? Suicídio, solidão, amizade, o tempo, a cobiça, inveja, maldade, deslealdade, bondade pouca, solidariedade zero, loucura, a existência quase sempre flagelada de quem se julga invulnerável. Depressão e por aí vai.

Sem condições quaisquer de escrever mais do que poucas linhas sobre este romance. Eis um livro dificílimo, pesado, e, absurdamente essencial. Ele traz à tona demônios, catarses, catilinárias. E, claro, um pouco de luz. Uma nesga. Assim penso e quero acreditar.

Ps - Os três primeiros parágrafos são leite condensado. O quarto parágrafo, que não tem fim, é início do ácido mais poderoso que há: a genialidade bruta de um homem que ousou dinamitar, com seus argumentos, jamais gratuitamente, a própria pátria, sua gente e ele próprio. E todos os transeuntes e leitores.
Manuella_3 25/08/2015minha estante
Bravo! Que resenha instigante, atiçou minha curiosidade, adoro a morbidez prometida. Já na lista!


Anderson 25/08/2015minha estante
Que resenha maravilhosa!


Arsenio Meira 25/08/2015minha estante
Manu e Anderson,
Obrigado, vcs são generosos e amigos. É um romance... daqueles.
Abraço grande pra vocês!


Levi 25/08/2015minha estante
Arsenio, ler suas resenhas e não colocar o livro na lista dos desejados é quase uma incoerência. rs!


LivreiroFabio 25/08/2015minha estante
Esses temas do primeiro parágrafo da sua resenha, amigo, são interessantes mesmo. Baita compêndio e resenha!


Arsenio Meira 25/08/2015minha estante
Levi, camarada, o mesmo eu digo e afirmo convictamente com suas resenhas e observações. A obra do Afonso Cruz - eu devo a você... Abraços


Arsenio Meira 25/08/2015minha estante
Fábio,
vc é como um irmão!
Respondi os e-mails. Valeu,
Abraços


Jaguatirica 01/05/2020minha estante
Saudades ;-; contente ao procurar um livro e ver que ele teve resenha sua. Me sinto levada a pô-lo imediatamente na lista de desejados


Manuella_3 01/05/2020minha estante
?




jota 15/08/2014

Exasperação...
Tudo que é humano é pouco estranho para Thomas Bernhard. Desse modo, O Náufrago é um romance mas ao mesmo tempo se parece também com uma obra de filosofia - embora sua leitura não seja tão árdua como se poderia supor. Sintomaticamente, o narrador do livro é chamado de “filósofo” (personagem sem nome), não o “naúfrago” (o músico suicida Wertheimer) e tampouco o pianista canadense Glenn Gould (1932-1982), os três personagens principais do livro.

Quem leu o volumoso Origem (eu li recentemente e penso que o livro não é apenas um dos melhores que li em 2014 mas um dos melhores que li na vida) vai ver que vários temas presentes nos relatos autobiográficos de Bernhard estão de volta aqui e literatura e vida se confundem (ele era um grande apreciador de música) com maestria nesse livro curto (cerca de 160 páginas na edição de 2006 e 235 páginas na primeira edição brasileira, de bolso, de 1996).

A história dos três é contada num único parágrafo que, obviamente, se inicia na primeira página e só termina na última (outra característica da escrita de Bernhard) e também é marcada pela raiva (o narrador diz odiar, entre tantas coisas, Viena, Salzburgo, toda a Áustria, enfim, o inferno na terra, como o próprio autor costumava dizer), pelo niilismo e pela repetição de palavras - a estrela aqui, repetida à exaustão, é “pensei”.

Pois eu sempre pensei que Bernhard - um dos representantes daquilo que alguns críticos chamam de “escola do desespero” – tivesse se suicidado, porém depois, melhor informado, soube que ele morreu aos 58 anos de um ataque do coração. Mas lendo suas obras eu não estranharia se ele tivesse posto fim a sua vida com as próprias mãos, como alguns de seus personagens.

Li O Náufrago na edição de 1996, que tem a apresentação do escritor Bernardo Carvalho (dos ótimos Nove Noites e Mongólia), que reconhece o escritor austríaco como uma de suas influências literárias. Achei mais interessante transcrever Carvalho do que escrever uma resenha própria, que certamente seria cheia de platitudes, mais parecida com um resumo, isso sim. Vamos lá, então:

“Três talentosos estudantes de piano se encontram num curso do Mozarteum de Salzburgo durante o pós-guerra. Um deles é o canadense Glenn Gould, que será consagrado em seguida, com a sua interpretação das Variações Goldberg, de Bach, como um dos maiores gênios do piano deste século. E será justamente ao ouvirem essa interpretação pela primeira vez, em 1953, que os outros dois colegas – mas sobretudo o “náufrago” do título – terão suas vidas aniquiladas.

“Este livro, uma obra-prima da literatura contemporânea, é a narração convulsiva e exasperada do último sobrevivente dos três, que volta à Áustria, vinte e oito anos depois – após a “morte natural” do próprio Gould aos 51 anos – para o enterro de outro amigo, Wertheimer, o “náufrago”, que acaba de se enforcar na Suíça. É a rememoração obsessiva rumo ao mistério desse momento fundamental, os primeiros acordes das Variações Goldberg por Glenn Gould, em que a semente do suicídio foi plantada na “alma” do protagonista ao perceber que jamais poderia equiparar-se a tal gênio.

“Assim também, a prosa de Thomas Bernhard produz efeitos ao mesmo tempo devastadores e jubilosos, por alargar, como um trator, os limites da própria literatura. O texto de Bernhard, com seu humor exasperado, uma espécie de júbilo da devastação contra tudo e todos, não deixa pedra sobre pedra, ataca a humanidade em todas as suas hipocrisias, cinismos e mesquinharias, abrindo o caminho para uma nova percepção e possibilidade da literatura a partir das cinzas e dos destroços. A “extinção” torna-se assim um renascimento através da gargalhada. E a raiva e a misantropia passam a ser um fator positivo ao mesmo tempo contra o que há de podre e a favor de uma humanidade mais verdadeira e íntegra.” (Bernardo Carvalho).

Lido em 14 e 15/08/2014.
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Dom Ramirez 08/02/2013

"Quem não é capaz de rir, não deve ser levado a sério"
Espetacular isso aqui! O leitor pode estar seguro de que está prestes a ler um livro raro. A partir do relato da relação entre três pianistas (sendo um deles o narrador do livro e outro ninguém menos que Glenn Gould!), Bernhard apresenta com maestria uma reflexão sobre inveja, frustração, talento, mediocridade, filosofia e suicídio, com uma profundidade e senso de humor dignos dos grandes mestres do passado.

O livro é repleto de tiradas geniais, aqueles que gostam de sublinhar não leiam sem seus lápis ou canetas. Néctar concentrado, aproveitem!

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