edu basílio 29/01/2023coragem & acuidade clínica (I)
eu me esforçarei acima de tudo para mergulhar em cada imagem, até que eu tenha a sensação
física de tocá-la, e que então surjam algumas palavras que me permitam dizer: 'é isso'.
--- tradução de um trecho de
"l'évenement" ("o acontecimento")
já se ventilava o nome de annie ernaux como nobelizável há pelo menos uma década -- uma brisa suave há alguns anos, ventanias mais sérias desde 2019-20. mas mesmo o nobel dela em 2022 não tendo sido uma total surpresa como foi em 2021 o de abdulrazak gurnah -- que, assumo, eu nem sabia que existia --, houve burburinhos antagônicos (normal em democracias saudáveis).
os entusiastas celebraram: viram não apenas como uma escolha 'inovadora' em termos do estilo literário contemplado, mas também 'ousada' pelo fato de AE se desnudar com zero pudor em seus livros para trazer aos holofotes temas incômodos, quase todos tabus para os tais 'cidadãos de bem'. já os detratores alegaram que a obra dela é 'egoica', 'muito autocentrada' [risos] e até que seus livros são curtos demais [lágrimas de rir]. com a hype do nobel, e entusiastas e detratores trocando porradas na internet (no skoob inclusive), e AE já tendo sido confirmada muitos meses antes disso tudo na FLIP 2022, meu desejo de descobrir sua literatura só pulsou mais forte.
e o fiz agora em janeiro. entretanto, antes construir qualquer comentário, eu quis ler mais de um livro para só então registrar algumas impressões mais abrangentes sobre sua escrita, ao invés de me ater a tal ou tal obra. para tanto, escolhi começar com três pequenos romances em que madame ernaux disseca lembranças daquela que, sem me importar com idade, eu estou chamando de "annie menina": sua solidão desesperada ao fazer um aborto clandestino aos 23 anos e sua relação com seus pais. quando eu tiver oportunidade, desejo ler outros em que ela retoma e examina vivências da "annie mulher": seu casamento e seus relacionamentos com homens diversos.
não me limito, pois, a comentar aqui
"je ne suis pas sortie de ma nuit" ("eu não saí da minha noite"), mas reflito também sobre a leitura de
"la place" ("o lugar") e de
"l'évenement" ("o acontecimento"). para simplificar a vida de todos nós, passarei a me referir a eles apenas por "noite", "lugar" e "acontecimento". os trechos transcritos dos livros estão em itálico e entre aspas. são minhas as traduções para o português, e sou o único responsável por eventuais erros ou imprecisões que porventura haja nelas.
o trecho de "acontecimento" que elegi como a epígrafe desta pequena resenha me parece bastante expressivo do que o pessoal de estocolmo quis dizer com
acuidade clínica, ao justificar que a concessão do prêmio a AE em 2022 se dava "
pela coragem e acuidade clínica com que ela desvela as raízes, as estranhezas e os constrangimentos coletivos da memória pessoal".
de fato, AE chega a explicitar repetidas vezes nos livros seu empenho feroz em escrutinar rabiscos e memórias a fim de buscar a materialidade de suas vivências e, com isso, transpô-las em palavras com a máxima precisão que conseguir. ainda em "acontecimento", dedicado a descrever sua atroz experiência de um aborto clandestino nos anos 1960 (o aborto só foi descriminalizado na frança em 1975), AE se interrompe para arrefecer seus sentimentos quando, ao seu ver, a ebulição deles arrisca prejudicar seu compromisso com a objetividade:
"en écrivant, je dois parfois résister au lyrisme de la colère ou de la douleur. je ne veux pas faire dans ce texte ce que je n'ai pas fait dans la vie à ce moment-là, ou si peu : crier et pleurer."
enquanto escrevo, eu me obrigo por vezes a resistir ao lirismo da raiva ou da dor. não quero fazer nesse texto o que eu fiz pouco ou nada na vida naquele momento: gritar e chorar.
em "lugar", um retrato da vida de seu simplório pai da infância à morte, ela também declara sem meias-palavras que pretende pôr a acurácia dos fatos acima de suas próprias emoções:
"depuis peu je sais que le roman est impossible. pour rendre compte d'une vie soumise à la necessité, je n'ai pas le droit de prendre le parti de l'art, ni de chercher à faire quelque chose de 'passionant' ou d''émouvant'."
agora sei que o romance é impossível. para retratar com precisão uma vida subjugada à necessidade, não tenho o direito de me enveredar pela arte, nem de tentar algo 'apaixonante' ou 'tocante'.
por outro lado, parece que em "noite", um registro sob a forma de diário da degradação de sua mãe desde o diagnóstico de alzheimer até a morte, o coração de AE sucumbe e ela abdica um pouco da acuidade clínica para expurgar sua própria dor, o que ela explica já nas páginas iniciais:
"en aucun cas, on ne lira ces pages comme un témoignage objectif sur le 'long séjour' en maison de retraite, encore moins comme dénonciation, seulement comme le résidu d'une douleur."
de forma alguma deve-se ler essas páginas como um testemunho objetivo sobre a 'longa estadia' no asilo, menos ainda como denúncia, mas tão somente como o resíduo de uma dor.
mas e sobre
coragem?
a coragem precede a acuidade clínica. a segunda não pode existir sem a primeira.
filha única de operários que mais tarde abriram um café-mercearia, AE fez faculdade de letras e se tornou professora, profissão que na frança tem uma valorização adequada. assim, seu caminho se rompeu tanto social quanto intelectualmente com seu meio de origem. e isso não é algo que se vive 'impunemente' -- eu falo aqui com conhecimento de causa: culpa, orgulho, síndrome do impostor, essas contradições todas vêm no pacote de quem vive esse tipo de ruptura.
nesse sentido, o simples fato de descobrir a expressão
'transfuge de classe' ('trânsfugo/a de classe'), que AE importou da sociologia para se definir, acalentou um pouco meu coração: denomina-se 'trânsfugo/a de classe' o indivíduo que passa por essa transição sociocultural em algum ponto da vida (NOMEAR é importante. em qualquer filme sobre possessão demoníaca, o demônio só se torna vulnerável à expulsão do corpo da vítima se o exorcista pronunciar o nome dele. psicoterapia é, em grande medida, sobre nomear.).
requer coragem exprimir com todas as letras a sensação perturbadora de que a implicância do seu pai com seus estudos talvez não fosse receio de que ela não conseguisse, mas sim alguma inveja por ela estar conseguindo, e que, ao conseguir, ela conquistasse outro "lugar" no mundo, ela se tornasse 'trânsfuga de classe' -- embora ela própria levaria décadas para descobrir a expressão, e o pai morreria sem sequer cogitar que a expressão existisse, muito menos o conceito propriamente dito.
"il se fâchait quand je me plaignais du travail ou critiquais les cours (...). et toujours la peur, ou PEUT-ÊTRE LE DÉSIR, que je n'y arrive pas."
ele se irritava quando eu reclamava dos trabalhos ou criticava as aulas (...). e sempre o medo, ou TALVEZ O DESEJO, de que eu fracassasse.
e requer coragem olhar para sua mãe sendo dizimada em fogo brando pelo alzheimer e constatar racionalmente que aquele final de vida degradante, e nada incomum, pode muito bem ser o seu em alguns anos. e mais uma vez, o distanciamento que AE consegue alcançar ao falar do pai não se observa com a mãe. com esta, há uma afeição que, apesar dos esforços, resiste mal domada. afinal, a mãe era uma mulher como ela, tinha um corpo igual ao dela, tornando inevitável não projetar-se nela (ou projetá-la em si).
"elle est ma vieillesse, et je sens en moi menacer la dégradation de son corps, ses rides sur les jambes, son cou froissé dévoilé par la coupe de cheveux qu'on vient de lui faire."
ela é minha velhice, e sinto em mim a ameaça da degradação de seu corpo, suas rugas nas pernas e no pescoço, exposto pelo corte de cabelo que tinham-lhe feito recentemente.
requer coragem, muita coragem, reviver, para escrever cena a cena, seu aborto clandestino de quase 40 anos antes -- a descoberta da gravidez não planejada, o desamparo emocional e social com essa condição, as hastes metálicas e sondas sendo enfiadas em sua vagina por uma 'fazedora de anjos', o feto sendo ejetado dali 'como um míssil' dias depois, junto com muco e sangue. mas resgatar minuciosamente tal "acontecimento" para o público não pode ser em vão, tem que haver um propósito maior.
"que la forme sous laquelle j'ai vecu cette expérience de l'avortement - la clandestinité - relève d'une histoire révolue ne me semble pas un motif valable pour la laisser enfouie - même si le paradoxe d'une loi juste est presque toujours d'obliger les ancinennes victimes à se taire, au nom du 'c'est fini tout ça', si bien que le même silence d'avant recouvre ce qui a eu lieu. c'est justement parce que aucune interdiction ne pèse plus sur l'avortement que je peux, en écartant le sens collectif et le formules nécessairement simplifiées, imposées par la lutte des années 1970, afronter, dans sa réalité, cet évenement inoubliable."
que a forma como vivi essa experiência de aborto - a clandestinidade - seja história superada não me parece um motivo válido para deixá-la enterrada - mesmo se o paradoxo de uma lei justa seja quase sempre calar as antigas vítimas em nome do 'isso agora acabou', e que o mesmo silêncio de antes recubra o que ocorreu. é justamente porque o aborto não é mais proibido [na frança] que eu posso, me afastando do sentido coletivo e dos chavões necessariamente simplificadores impostos pela luta dos anos 1970, afrontar, em sua realidade, este acontecimento impossível de se apagar da memória.
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