Coruja 25/05/2012Wear the lilacEstive esperando um longo tempo para ler esse livro e escrever essa resenha – mas era necessário esperar chegar a data certa para fazê-lo. Assim é que organizei meu cronograma desde ano passado para que este volume caísse em maio e eu pudesse comentá-lo exatamente na data de aniversário da Revolução Gloriosa.
Eis, finalmente, que estamos aqui.
Os livros da série Discworld que se concentram na Guarda são os meus favoritos (Small Gods é uma exceção à regra). Toda vez que avanço mais um volume deles, troco o primeiro lugar da minha lista. Mas, francamente, não acho que a coisa possa ficar muito melhor que Night Watch.
A primeira coisa que você precisa saber sobre esse título é que ele não é um livro engraçado. Ele tem boas tiradas de humor negro e politicamente incorreto. Mas não é engraçado. Ou sutil.
Ao começo da história, Vimes, comandante da Guarda de Ankh-Morpork, está perseguindo alucinadamente um assassino psicopata que tem um especial prazer em matar policiais. Os dois acabam por se enfrentar no teto de vidro da Biblioteca, na Universidade Invisível, em meio a uma tempestade que não tem nada de natural.
Raios e trovões. O teto se parte. Vimes e Carcer despencam de uma altura que deveria ser mortal… para então acordar trinta anos no passado, às vésperas de um banho de sangue que marcou a história particularmente sangrenta da cidade – a Revolução Gloriosa, da qual Vimes participou quando era apenas um cadete recém-chegado à Guarda... quando perdeu a inocência, ingenuidade e além de fiéis companheiros, o homem que lhe ensinou tudo o que fez dele quem ele era agora.
O Patrício da época, paranóico com a certeza de um golpe para tirá-lo do poder (que está realmente correndo nos bastidores, mas claro que ele não se deu nem conta de quem é que são os verdadeiros conspiradores...) instituiu um verdadeiro reino de terror na cidade, com censura, toque de recolher e uma polícia secreta com livre mando para prender, torturar e sumir com as pessoas nos porões de sua base, cumulado com impostos altíssimos, extorsões e todo tipo de abuso.
Night Watch ecoa muito de perto o caos social do período pós-napoleônico na França, das revoltas e barricadas em Paris em 1832 – o mesmo motim que serve como pano de fundo para Os Miseráveis, de Victor Hugo.
Isso, claro, não é uma coincidência.
Vimes é Javert, o policial sempre perseguindo Valjean. Só que os temas e princípios de Vimes são muito diferentes de Javert – a começar pelo fato de que o homem que ele persegue, Carcer, é um psicopata completo, do tipo que arranca seus intestinos com uma faca enquanto assovia.
Onde Javert conceitua a justiça como punição dos culpados, Vimes a entende como a proteção dos inocentes – e é exatamente isso que ele faz nesse livro.
Claro que nada é tão simples... ou maniqueísta. Não seria Pratchett se fosse, não é verdade?
A chegada de Vimes e Carcer ao passado cria uma espécie de aberração temporal – algo que pode alterar o inteiro futuro deles. Para que isso não ocorra, ambos precisam assumir certos personagens e, para Vimes especialmente, tal mascarada é dolorosa: ele sabe o que aconteceu e sabe que se quiser, pode salvar aqueles que se perderam na Revolução; poder reescrever a história para que ela não volte a terminar em tragédia.
Mas isso significa abrir mão de seu futuro – e de sua família. Em uma das cenas que mais me marcou no livro, Vimes corre para onde será sua casa, desesperado para ter certeza de que está tudo bem com a esposa, Sybil (que além de tudo, está grávida), para encontrá-la como uma adolescente que, obviamente, nunca ouviu falar dele na vida.
Ele se vê tendo de decidir entre aquilo que é certo e o que sabe tem de fazer para preservar seu futuro – sem ter certeza absoluta de que esse futuro ainda lhe é possível. Tudo isso enquanto a cidade se prepara para queimar.
Em 2007, Pratchett foi diagnosticado com Alzheimer. Desde então, fãs do autor usam, no dia 25 de maio, ramos de lavanda – usada como símbolo pelos revolucionários de Night Watch quando da traição do Patrício e, posteriormente, para relembrar e homenagear aqueles que caíram lutando – e fazem doações para um fundo de pesquisas da doença.
Até onde eu saiba, não existe nenhuma iniciativa parecida aqui no Brasil. Eu gostaria de fazer uma doação, mas não descobri exatamente onde eu vou para isso. Por hora, apenas uso a lavanda – ainda que ninguém com quem eu cruze no dia-a-dia vá entender o significado do ato.
Então, é isso. Lembrem da Gloriosa República de Treacle Mine Road. Verdade. Justiça. Liberdade. Amor com Preços Razoáveis. E um ovo cozido. Use a lavanda.
"The occupants of these graves had died for something. In the sunset glow, in the rising of the moon, in the taste of the cigar, in the warmth that comes with sheer exhaustion, Vimes saw it.
History finds a way. The nature of events changed, but the nature of the dead had not. It had been a mean, shameful little fight that ended them, a flyspeck footnote of history, but they hadn't been mean or shameful men. They hadn't run, and they could have run with honour. They'd stayed, and he wondered if the path seemed as clear to them then as it did to him now. They'd stayed not because they wanted to be heroes, but because they chose to think of it as their job, and it was in front of them..."
Em memória de John Keel, Billy Wiglet, Horace Nancyball, Dai Dickens, Cecil 'Snouty' Clapman, Ned Coates e (tecnicamente) Reg Shoe.
(resenha originalmente publicada em www.owlsroof.blogspot.com)