Lucio 01/10/2015
De tirar o fôlego! Freud tenta explicar o sentimento de culpa e a angústia humana do 'homem civilizado'
Este é o primeiro livro do Freud que lemos por completo. Deu pra ver o porquê deste homem ter ganhado tanta fama. Ele é muito lúcido e culto. Além de mostrar-se bem informado, escreve de forma prazerosa sobre temas espinhosos. É muito honesto também, admitindo ignorância em vários pontos e fazendo apontamentos para desenvolvimentos noutros. É um autor fascinante, embora nós discordemos na maior parte a respeito de tudo o que ele diz por termos cosmovisões diferentes.
Em poucas palavras, o autor defende que o mal-estar da civilização é basicamente o instinto de morte que há no homem, e os resultados psicológicos disso. Em suma, o homem é um inimigo da civilização enquanto séquito do ID. O instinto de morte que há no homem peleja contra a tendência do Eros de uni-lo a outros. E ele acaba reprimindo essa agressividade gerando grande infelicidade para si por conta das neuroses e sentimento de culpa oriundos dessa resistência e do poder que o superego exerce sobre ele.
O enseio é pessimista, no melhor sabor hobbesiano, schopenhaueriano e nietzschiano. O autor considera que a culpa não passa da agressividade reprimida e voltada contra o próprio indivíduo. A moral é o superego social que logo será introjetado no indivíduo, assimilado por seu superego e manifesta em sua mente em forma de consciência. Assim, não há moral e nem ética de verdade.
O que o homem quer é lido em termos utilitarista. A religião é apenas uma ilusão (seguindo a linha do 'Futuro de uma Ilusão') que tenta lidar com a culpa. Mas é a via errada. A via da ética também não serve. Freud sugere uma relação diferente para com as propriedades, mas isso não resolveria o problema, só minoraria pois não crê na ilusão socialista de que o homem só é mau por causa do meio. Ele é mau por natureza. Ele tem um instinto de morte.
Todo o ensaio tem um caráter de avaliação da tensão entre o homem e a cultura ou civilização. Esta inclusive é vista - a la República de Platão - como uma ampliação do homem, desenvolvendo até mesmo um superego cultural. E, portanto, pode ser que exista uma neurose cultural. Freud faz apontamentos para uma terapia cultural também.
O autor não tem pretensão de fazer um juízo sobre o valor da civilização. Prefere abster-se de julgar. Apenas expôs toda a tensão existente entre o homem e a vida comunitária. Mas conclui dizendo que não pode confortar a ninguém. E que só podemos torcer para que o Eros se sobressaia ao Tanatós. Uma conclusão sombria.
Embora, como calvinista, concordemos com ele de que há uma inclinação para o mal no homem, fazemos leituras diferentes da cognição humana. Freud, embora dialogue (tacitamente) com vários pensadores, evidentemente ignora tantos outros. Para começar, o erro fundamental dele é simplesmente, num passe de mágica, lançar para longe a questão do conflito existencial humano. Ele diz que é uma questão insolúvel e não mais toca no assunto. Mas em coro com Sócrates, Agostinho, Calvino, Pascal, Goethe, Dostoiévski, Kierkegaard, Karl Jasper, Heidegger e Sartre (dentre outros), poderíamos mostrar que o homem não pode ficar em paz, e uma ansiedade singular lhe toma o coração (ou 'a alma', ou 'a psiquê') no que diz respeito ao motivo de sua existência, o significado de seu ser e do mundo. Não lidar com essa questão é querer trazer uma paz terapêutica meramente paliativa (mais do que o próprio Sigmund imagina).
Além disso, ele, na sua imaginação sobre o desenvolvimento da consciência da criança, inclusive da consciência de si, ignora a discussão do papel e da origem dos pressupostos que estão presentes em cada conclusão tomada pela criança. Parece que ele não estava ciente disso.
Por fim, podemos apontar que Freud desconsidera o argumento transcendental ou a epistemologia reformada (embora elas sejam mais recentes, vários autores já haviam esboçado-as, dentre os quais Agostinho, Hodge, Strong, Bavinck... e sabe-se lá mais quem). Em suma, descobrir um instinto de morte, um instinto libidinoso, um apreço pela felicidade e tantas outras coisas que elaborou não parecem eliminar a existência da moralidade ou dos valores reais. Sua busca por tentar uma teoria que explique a faculdade moral do homem parece-me ter várias lacunas e, se nosso juízo de certo e errado é uma ilusão - não o que é certo e errado, mas apenas a faculdade moral da mente -, então ele teria que duvidar do funcionamento da mente em geral, inclusive da empiria. O resultado, como muitos autores mostraram, é o solipsismo.
Além disso, estamos interessados em pesquisar mais o pensador em prol de tentar cobrir algumas lacunas em seu pensamento e, num trabalho próximo queremos compará-lo com seus críticos cristãos dentre os quais, principalmente, C. S. Lewis. Deixemos esses demais apontamentos para um outro momento.
Por ora, nossa respeitosa avaliação crítica de um bom pensador.