Dayvid Simplicio 09/03/2019
FREUD, Sigmund (1929). O mal estar na civilização. Edição Standard Brasileira das Obras Completas de Sigmund Freud, vol XXI. Rio de Janeiro: Imago, 1996.
Nascido em 1856 na antiga Morávia, império austríaco, Sigmund Freud foi um dos mais influentes médicos neurologistas do seu tempo e um dos mais dedicados cientistas da modernidade, cuja produção repercute e se aperfeiçoa até os dias de hoje. Autor de uma vastíssima obra, Freud deixou muitos escritos nos quais desenvolve com maestria as suas teorias e os seus estudos sobre a Psicanálise e os métodos de acesso ao inconsciente. Além de O mal estar na civilização, ele é autor de outras obras famosas, como A interpretação dos sonhos (1900), Além do princípio do prazer (1920), entre outras. Freud morreu em 1939, na Inglaterra e ainda vivenciou o crescimento da Psicanálise, que foi impulsionada pelo trabalho de muitos seguidores.
Publicado em 1929, um pouco antes da queda da bolsa de valores em Nova Iorque, o texto Mal estar na civilização traz uma reflexão de Freud sobre o indivíduo coletivo, aquele que vive em sociedade. Parte do princípio de que o ser humano não consegue ser feliz vivendo na sociedade organizada, porque seus desejos instintivos não são compatíveis com os objetivos da civilização. É um olhar pessimista sobre o ser humano após a Primeira Guerra Mundial, no meio da ascensão de regimes totalitários e intolerantes pelo mundo todo. Em oito capítulos, Freud propõe uma reflexão embasada em sua teoria psicanalítica, valendo-se de conceitos-chave, como o de neurose, sublimação, libido, pulsões etc.
Uma das primeiras considerações de Freud, neste texto, é sobre o que ele chamou de princípio de prazer, segundo o qual o indivíduo é impulsionado a buscar para si a felicidade e o bem-estar. Porém, este indivíduo, uma vez inserido em uma sociedade, precisa de desvencilhar de sua natureza instintiva, ou seja, renunciar a muitos desejos para poder viver uma condição em que seus desejos não podem ser satisfeitos plenamente, isto é, a civilização.
Diante desta realidade em que se encontra o homem “civilizado”, o autor lembra, na segunda parte, que este indivíduo que perdeu sua individualidade precisa formalizar contratos, regras, leis, proibições para que essa vida comunitária seja possível. Em outras palavras, os interesses sociais são sufocados em vista da realização dos interesses coletivos, e isso causa ao homem um mal-estar.
Mais adiante, no terceiro capítulo, Freud aponta que muitas neuroses são originárias dessa repressão que a civilização fez com os instintos humanos. Esse mal-estar causado pelas regras e leis aliena o ser humano de si mesmo e lhe impulsiona a buscar uma sublimação desses desejos reprimidos, o que agrava ainda mais esse mal-estar, já que deixa o ser frustrado. A sublimação é necessária, diante da forte energia psíquica que se acumula na contenção dos desejos. A essa energia Freud chama libido.
A principal repressão consiste nos desejos e instintos sexuais. Segundo o autor, a sociedade organizada cria um modelo de vida sexual uniforme para ser vivido por todos os seus membros, de modo a manter a ordem e o cumprimento das leis. Esse princípio é criticado por Freud, já que vai de encontro à sua teoria da sexualidade, conforme ele escreve: “a exigência de uma vida sexual uniforme para todos ignora as desigualdades na constituição sexual inata e adquirida dos seres humanos”.
No quinto capítulo, Freud destaca a segunda maior repressão ao indivíduo em sociedade, isto é, a repressão da agressividade, que está ligada à pulsão de morte. O pai da Psicanálise acredita na natureza má e perversa do ser humano, porquanto enxerga na sua constituição natural a inclinação à violência. Em suas palavras, “o ser humano é agressivo e mau por natureza, e o outro é a tentação para se satisfazer a agressividade”. Para que a civilização seja construída e a sociedade organizada, é preciso fundamentalmente conter esses dois instintos básicos do ser humano. E o autor encerra este capítulo de forma contundente ao afirmar que o homem primitivo tinha mais condições de ser feliz, porque não conhecia nenhuma dessas repressões.
Mais adiante, Freud descreve o principal meio pelo qual esses instintos são reprimidos em sociedade, ou seja, o sentimento de culpa. Mesmo que haja instituições sociais de força, como a polícia, o judiciário, é necessário recorrer a outro aspecto, que possa incutir na cultura uma autofiscalização, já que seria impossível reprimir com a força todas as transgressões às leis. No sentimento de culpa, o homem social é repressor de si mesmo, e contribui assim com a ordem social. Para a teoria psicanalítica, o sentimento de culpa cria a instância psíquica do superego, fundamental para o desenvolvimento psíquico do ser humano. Nesse caso, porém, há o superego coletivo, que consiste na ética. Ainda falando sobre isso, o autor retoma sua discussão inicial sobre religião, ao afirmar que as instituições religiosas prestam o maior serviço à sociedade organizada, ao ser grandes responsáveis pela sublimação dos desejos instintivos do homem, e consequentemente, as maiores impostoras do sentimento de culpa na cultura.
Encerrando o texto de forma ainda mais pessimista, Freud coloca outras questões e reflexões, afirmando que ele não pretende encerrar uma discussão sociológica. Ele se questiona até que ponto a evolução social poderá reprimir os instintos humanos e causar mais sentimentos de mal-estar e infelicidade.
As provocações deste texto de tornam muito necessárias para a análise atual do homem em sociedade. Podemos nos perguntar, partindo dessa reflexão, em que consiste o mal-estar na nossa sociedade hoje. Quais são os aspectos que evidenciam essa repressão dos nossos desejos? Em que estamos sofrendo? E além disso, podemos, assim como o autor, propor questionamentos para o futuro. Como se comportará esse ser humano mau e agressivo daqui para frente? Como sublimaremos os nossos impulsos? O texto é imprescindível para uma leitura psicanalítica da modernidade, bem como para uma compreensão contextualizada dos conceitos criados por Sigmund Freud.