david andriotto 04/04/2024
O sono significa um fim da autoridade do eu!
É uma leitura muito excepcional de minha parte, algo inovador em meu mundinho de leituras. É, na verdade, um exemplar que peguei emprestado de minha psicanalista… o que dá certa potencialização à leitura, por menos que minha pessoa seja perseguida pela frágil comunicação dos sonhos com a vida de vigília, como o autor denomina o período diurno. É um livro cuja função social é a de publicidade de pesquisa acadêmica. Logo em seu prefácio, nos adianta sobre a primeira e talvez fundamental problemática metodológica: muitos dos sonhos analisados são os dele e que, portanto, esbarra na incompatibilidade de sua posição em se expor em demasia, mas que sem isso o seu método científico é falho.
É uma obra extensa, vou tratá-la de modo didático. É certo que ao passar da quadringentésima página tudo fica enfadonho, como a vida de Alice. talvez seja por isso que haja tantos sonhos nestas páginas.
Os sonhos!
O primeiro capítulo é destinado a revisão bibliográfica do assunto, que Freud perpassa muito bem. Aponta diversos ângulos e visões através do tempo e do avanço do debate teórico. É nessa parte que recebemos o primeiro verbete sobre os sonhos: todo sonho se revela como uma estrutura psíquica que tem um sentido. É isso que nos guiará pelas próximas centenas de páginas. Descobri posteriormente que isso foi uma imposição do editor, que muito salvou a obra.
São trabalhados tópicos essenciais ao entendimento do método freudiano para os sonhos, afinal. “Todo o material que compõe o conteúdo de um sonho é derivado, de algum modo, da experiência”. Podem ser lembranças que são inacessíveis na vida de vigília e é simplesmente uma questão do acaso descobrir-se ou não a fonte dos elementos específicos de um sonho. Para a discussão histórica, a infância é uma boa fonte de recursos aos sonhos, mas a maioria continua sendo o penúltimo ou antepenúltimo dia do ocorrido sonho.
A escolha do “material” é revestida de irrelevância. São elementos que passariam despercebidos por nós no período de vigília, como por exemplo o nome de um café da Starbucks lido em um cartaz na Avenida Paulista que juramos nunca termos visto. Este aspecto é muito interessante e demonstra para Scholz (1893) que “nada que tenhamos possuído mentalmente uma vez pode se perder inteiramente”. Haja boa gestão de armazenamento interno!
Há um interessante debate sobre estímulos sensoriais, se internos ou externos. A ideia basilar é entender que ao estarmos dormindo não estamos completamente desligados do mundo exterior, que continua a funcionar apesar de nossa inércia. Alguns apoiam a perspectiva que uma porta batendo faz com que sonhemos com tiros, estrondos; assim como um cachorro latindo ou um galo cantando ocasionaria outros acontecimentos. A perspectiva que Freud toma é a de que não devemos nos limitar aos estímulos sensoriais objetivos durante o sono.
E o famoso esquecimento. Grande quantidade dessas imagens oníricas são esquecidas em totalidade ou fragmentos. A explicação é diversa e muito objetiva, na verdade. Os sonhos são confusos e desordenados (apenas os colocamos em ordem (sequência causal com sentido de enredo) quando tentamos ordená-los ao acordar), portanto são difíceis de mantê-los guardados na memória por não terem este sentido claro de sequência, como um filme. Além disso, é destacável que os sonhos esquecidos (nada é esquecido totalmente, como já vimos) podem ser recordados ao longo do dia ou dos tempos a partir de uma percepção causal (vi um homem na rua usando um paletó = omg ontem sonhei com um casamento). E, claro, ninguém se importa tanto com os sonhos. É nítido e perceptível que quem os anota e realmente os guarda com afinco os lembrará com maior facilidade. Inclusive, depois que comecei a ler este livro tive uma percepção maior de minha atividade onírica. Uma externalidade que descobrirei positiva ou negativa com o passar do tempo.
O método de interpretação!
O método para interpretação difere do clínico e do popular (embora, surpreendentemente, se aproxime mais do segundo, de acordo com o autor). A análise das imagens oníricas é feita en détail, adotando os sonhos como de caráter múltiplo, um conglomerado de formações psíquicas. Nesse sentido, o sonho deve ser dividido em suas partes e nunca analisado como um todo.
A grande máxima a se saber é que o sonho é a realização de um desejo, não necessariamente aparente e atual. Assim como sonhos de angústia (os famosos e terríveis pesadelos) também revelam em si uma compensação de desejos. Se, no estado de vigília, algo lhe é negado ou uma vontade reprimida, o inconsciente a revela e a realiza durante a noite.
penso em ilustrar a ideia de sonhar/analisar:
conteúdo latente (mensagem inconsciente) → conteúdo manifesto (as cenas de um sonho)
o conteúdo latente por ser inconsciente é, em geral, reprimido. sua aparição só ocorre em momentos de baixa guarda (quando estamos adormecidos) e mesmo assim de maneira censurada: o conteúdo manifesto talvez esteja irreconhecível se comparado ao que saiu de sua fonte. a análise busca esta tradução, em identificar a mensagem inconsciente, este é nosso ouro.
a fábrica dos sonhos possui diretrizes para a produção deste roteiro censurado. freud identificou a (i) condensação, como o artifício de resumir o amplo conteúdo latente, garantindo a cada elemento de um sonho tem um amplo conjunto de pensamentos oníricos sendo representados através dele; e o (ii) deslocamento, como a arte de inverter a intensidade psíquica de alguns elementos do sonho. se no inconsciente algo é protagonista, o roteiro de um sonho pode lhe garantir um papel sub-representado; e a (iii) elaboração secundária, que acontece quando já estamos acordados e, ao tentar recapitular as imagens sonhados, acabamos por influir cenas que não existiam neles, mas que acabam fazendo sentido para a narração da história.
a análise é de todo modo individual. cada caso é um caso. a interpretação deve se valer da narração do sonho e de todo um preâmbulo necessário, informando todas as informações possíveis que possam fazer relação ao sonho. mas há algo generalista identificado pelo autor: a simbologia universal. o uso dos símbolos (método popular) não deve ser encarado como irrelevante, mas auxiliar à interpretação, principalmente quando tais elementos são universalizados a partir da cultura e história [e aqui faço um adendo a sigmund freud de que tais símbolos e significados irremediavelmente devem se alterar no tempo e no espaço]. posso citar reis e rainhas como símbolos de pais; príncipes e princesas como os próprios sonhadores; o ato de subir e descer escadas como representação do ato sexual; armas, instrumentos e chapéus como analogia do órgão sexual masculino.
dito tudo isso, não me sinto nenhum pouco seguro em inferir sobre meus próprios sonhos, mas é ótimo ter este guia basilar. ao ter um sonho, me parece errado a imediata busca pelo desejo ali manifesto, deve-se ater aos mecanismos de censura (condensação, deslocamento, elaboração secundária) e não se objetivar em simbolismos, assim como observar en détail. em suma, busque anotar sua atividade onírica ao acordar e converse bastante com um especialista em interpretação, de preferência algo certificado pelo ministério da educação e cultura.