Núbia Esther 18/01/2018“(…) Naquele instante, percebi que aquela boca jamais cessaria de devorar, que aquelas mandíbulas jamais parariam de mastigar e que aquela língua jamais se cansaria de ser banhada no sangue de outros seres viventes. Então, teus lábios se mexeram. Esforçavas-te para dizer tua primeira palavra. E a palavra seria “eu”. Porém, o pai te cortou a palavra, dirigindo-se a mim com aquela voz ao mesmo tempo cordial e dominadora:
– Lúcifer, eis o homem! Deves obedecê-lo da mesma forma que teus irmãos…
(…)
Como é sabido de todos, não me curvei perante aquele novo bicho de estimação do pai, e por isso fui defenestrado do reino dos céus, junto com aqueles que quiseram me seguir. E a ti, criatura, lego-te, como um adeus, minha visão de ti. ”(Página 14)
É com esse prelúdio que Sjón entrega o prenúncio de sua obra. Um prenúncio um tanto pretensioso demais? Foi com essa sensação que adentrei à história de Jónas Pálmason. Inspirado por sua formação musical (talvez), Sjón é letrista e assinou canções de um álbum da Björk e de um dos filmes do diretor Lars von Trier, ele estruturou sua obra quase como uma peça musical: um prelúdio, seguido de dois movimentos, um intervalo, mais dois movimentos e a conclusão. Sem dúvidas, essa estruturação vestiu a obra de uma grandeza exacerbada. A impressão que tive é que no final das contas não havia tanto a contar sobre a história de Jónas e que todo esse rebuscamento empreendido por Sjón longe de potencializar sua história, faz é afastar o leitor que acaba não sendo cativado. Não duvido nada de que muita gente deva ter abandonado Jónas pelo caminho.
Em Pela Boca da Baleia encontramos Jónas Pálmason durante o equinócio de outono em 1635. Há quatro anos ele já está em seu exílio forçado em uma ilha isolada da Islândia. É ali, com os olhos presos no horizonte em busca do continente que lhe é proibido, que ele nos convida a enveredar-nos pelos meandros de suas reminiscências. Por que ele foi parar na ilha? Quais os seus pecados? Quais foram os interesses das pessoas que lhe impingiram o desterro? Seu fascínio pelos bezoares, que o levava a empreender caçadas por carcaças de corvos ainda em sua tenra idade? Suas leituras e a curiosidade pouco ortodoxa que o tornaram um entendedor dos males femininos e um bom curador deles? Suas experiências como exorcista que lhe renderam grande renome? Suas inúmeras incursões pelos vastos caminhos desconhecidos da ciência, pelos sagrados costumes da religião e pelas histórias fantásticas da mitologia? Toda essa mistura incongruente que está na essência da formação do povo islandês é enaltecida por Sjón enquanto amealhamos as memórias de Jónas.
Eu escolhi ler o livro do Sjón por causa do projeto “Volta ao Mundo em 198 Livros”. Imaginei que seria um bom representante para Islândia, uma obra que propiciaria um maior contato com a história e a cultura do país. Mas, ainda que haja vislumbres da história da formação do povo islandês e sua cultura, eles são borrados pela aura de misticismo exacerbada. O título ainda continuará como primeira escolha para representar o país, mas irei atrás de outras obras e autores que consigam me apresentar mais da Islândia. Mística (ou melhor, mitológica) sim, mas não só isso. É frustrante quando você percebe que um autor inglês obteve mais sucesso em apresentar o país (Onde as Sombras se Deitam – Michael Ridpath) do que um autor nacional.
No final das contas, a história de Sjón provocou sentimentos díspares. Ainda que em alguns momentos a história e as reminiscências de Jónas consigam fornecer um retrato místico e lendário da Islândia e que Sjón tenha conseguido fazer construções que são poesia pura, em vários outros a estruturação de seu texto em parágrafos realmente longos não contribuiu para a fluidez da leitura. Ainda que eles façam todo o sentido com a sensação que Sjón parece querer provocar, i. e., exprimir a sensação de um fluxo de reminiscências desenfreadas, única atividade que restou à Jónas em meio à solidão forçada; eles emperram a leitura deixando o texto muitas vezes bastante soporífero. O romance pode até ser curto, mas a impressão é que se está a ler muitas e muitas páginas a mais. Não foi ruim de todo, mas esperava mais e Sjón infelizmente decepcionou.
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