spoiler visualizarNathalia 17/05/2022
mama i'm in love with a criminal
Deus me perdoe por não dar notão pra um clássico. Mas a gente tem umas coisas pra conversar.
Antes de mais nada, eu ouvi a maior parte desse livro em audiobook e assumo que essa não é a forma mais efetiva de leitura quando você quer fazer uma análise mais profunda: você consegue compreender o enredo muito bem, mas sem dúvida perde bastante da escrita em si, da estilística. E também queria dizer que esse não foi um audiobook que eu consegui ouvir no metrô ou no ônibus (os principais lugares onde eu escuto livros), porque percebi que eu precisava dedicar mais atenção pra ele do que era possível nesses lugares, o que também me levou a ler o livro bem mais devagar do que eu estou acostumada, acho que levei duas semanas e meia/três semanas, o que é péssimo porque eu perdi um pouco do início da história quando eu já tava no final.
Eu fui ler esse livro porque eu adoro o filme de 1940, inclusive acho que ele é meu filme favorito do Hitchcock (o que pode te dar uma impressão errada do que eu acho do Hitchcock porque ele é potencialmente o filme menos autoral dele), mas cara? kkkkkkk. Ai ai, que dó de mim.
Bom, o filme é, de fato, bastante fiel ao livro, com a pequena diferença de que o Maxim é 100% um assassino no livro.?
E daí é que nossos problemas começam, porque a partir do momento que você entende que você é um ASSASSINO, você meio que começa a pensar que talvez a visão que a gente tem dele e a versão dele dos fatos talvez não seja a verdade completa. E também, e eu acho que a gente precisa deixar isso bem claro, vender esse livro como um romance é BEEEM problemático.
Vamos aos fatos. De maneira bem objetiva, o livro segue a história de uma moça de 20 e poucos anos que trabalha como dama de companhia que acaba casando um viúvo rico com o dobro da sua idade e quando vai morar na mansão dele passa a ser ?assombrada? por Rebecca, a primeira esposa do cara, que morreu afogada. Depois de passar uma boa porção do livro com a auto-estima no chão por sentir que não consegue servir na posição deixada pra ela por Rebecca, ela finalmente descobre que o primeiro casamento do marido era só de fachada e que o Maxim na verdade odiava tanto a primeira mulher que ele assassinou ela e jogou ela no fundo do mar. Depois disso, a 2ª Mrs. de Winter, tem um salto de auto-estima, convencida do amor do marido unicamente por ela e a gente passa os últimos capítulos acompanhando o julgamento e investigação que acabam por determinar que a Rebecca se matou após um diagnóstico de câncer terminal (mesmo que a gente saiba muito bem que na verdade o Maxim assassinou ela).
Vamos analisar o que a gente sabe sobre o relacionamento da Rebecca e do Maxim:
1. Maxim afirma que eles se odiavam e mantinham um casamento de fachada pelo bem das aparências.
2. Pelo ?acordo? arranjado por eles, Maxim permitiria que ela seguisse seu estilo de vida e em troca ela administraria Manderley.
3. Rebecca mantinha amantes em Londres, em especial o seu primo Jack Favell (há indicações de que ela também se encontrava com mulheres).
4. Maxim passou a ter problemas com o estilo de vida de Rebecca quando ela começou a ?dar em cima? de pessoas próximas à ele E levar amantes para Manderley.
5. Maxim mata Rebecca após ela insinuar que estava grávida e que a propriedade sairia da linhagem dos de Winter por conta disso.
Primeiro, sobre o ponto 2, ao meu ver as duas "cláusulas" do acordo beneficiam a Rebecca e eu não vejo porque o Maxim concordaria com essa versão da história. Não era incomum que casais se ?separassem? e vivessem vidas independentes na década de 30, ainda que não houvesse divórcio e ao meu ver (até por conta do seu segundo casamento com alguém de uma classe inferior e logo após a morte de sua esposa) o Maxim não se importa tanto assim com o status. Um acordo mais provável teria sido x quantia de dinheiro como mesada + moradia digna da posição de Rebecca, em troca da discrição dela com amantes. Pela forma como Manderley é descrita talvez houvesse uma residência para ela dentro da propriedade. Tudo bem, podemos até pensar que a Rebecca não aceitaria um acordo desses, mas é muito estranho que eles não tenham chegado em um meio termo nas negociações que fizeram após o casamento.
Eu tô falando tudo isso, porque talvez, TALVEZ o relacionamento deles não fosse um desastre desde o início. A partir do relacionamento dele com a 2ª Mrs. de Winter a gente percebe que ele é até um pouco caloroso a princípio, mas se afasta gradualmente dela durante o cotidiano em Manderley. E SE o mesmo ocorreu durante o relacionamento dele com a Rebecca só que ao invés de ser trouxa como a 2ª Mrs. de Winter, ela passou a procurar outros relacionamentos pra se satisfazer? Ou ainda ela era uma mulher lésbica que nunca iria se satisfazer com o Maxim e por isso procurou outros relacionamentos (essa história eu acredito um pouco menos, porque ela realmente parecia desenvolver relacionamentos com homens pra se satisfazer, mesmo com o discurso da Mrs. Danvers (?She was not in love with you, or with Mr. de Winter. She was not in love with anyone. She despised all men. She was above all that?), que eu na verdade acho que aponta mais sobre a própria Mrs. Danvers do que sobre a Rebecca. E de qualquer jeito, não é como se eu precisasse apontar aqui universos onde seria ou não aceitável que ele matasse a esposa. Ele é horrível de qualquer forma porque ele matou ela, não importa se havia motivo ou não para ela trair ele, só falei dessa possibilidade aqui porque realmente acho que o relato dele sobre o relacionamento dos dois não é confiável. É muito fácil você falar ?a gente fingiu o tempo todo, pra todo mundo, nem minha irmã sabia, nem os empregados sabiam? porque daí é óbvio que ninguém vai desmentir a história deles. Se a Rebecca era um amor de pessoa com todo mundo, menos com você, talvez você fosse o problema, Maxim. Até o cachorro gostava dela, quer um ser vivo melhor pra julgar caráter do que um cachorro?
Tudo isso, se tivesse sido feito de forma deliberada, se a Daphne du Maurier tivesse escrito o livro pra criar essa discussão estilo Dom Casmurro estaria ok comigo, de verdade. Eu daria 5 estrelas numa boa. Mas ai eu vi que ela definiu esse livro como ?um estudo sobre ciúmes? e daí eu fiquei tipo? é não vai dar pra defender. Eu sei que a du Maurier escreveu o livro e eu só escutei, mas não é sobre isso. O livro é sobre alguém insegura que não consegue se ajustar às expectativas impostas sobre ela. Isso é o mais interessante e a coisa mais bem feita do livro. A angústia da Mrs. de Winter em assumir a posição da Rebecca, de se sentir equivocada, de sentir menor que a Rebecca, sentimentos que ela tem, em grande parte, pelo abandono do marido e a forma insensível que ele a trata. Inclusive só lembrando aqui que logo no início ele destaca que o que a atrai nele é o fato dela ser jovem e que vai ser uma pena quando ela tiver 30 e poucos anos por que ele ama a ingenuidade dela (o que me faz gritar DANGER DANGER DANGER por dentro).
De forma geral acho que o erro do livro é ele ser vendido como um romance, mas ao mesmo tempo, eu acho que a Daphne du Maurier desenhou ele assim. Eu sei disso porque eu adoro o Laurence Olivier no filme e no início do livro, em Monte Carlo ainda (antes de você se dar conta de que no livro ele é um assassino com A maiúsculo, diferente do filme) eu tava gostando dele também. Mas sério, depois que ele assume ser um assassino e mesmo assim a Mrs. de Winter se demonstra ainda mais apaixonada por ele eu fiquei só ?????????.
E esse foi o grande problema pra mim. A cara de romance não se sustenta 80 anos depois (e se se sustentou na década de 30, foi se apoiando no discurso de que a Rebecca era uma mulher promíscua - o que não devia ser um motivo).