spoiler visualizarkafkashore 27/04/2021
Um livro inesquecível
Rebecca, à primeira instância, parece um grande cliché. Uma mocinha inocente se depara com um homem mais velho, rico e viúvo, que parece constantemente assombrado pelo seu passado e se apaixona perdidamente por ele enquanto se questiona se algum dia será digna do seu amor. Eles se casam, ela precisa lidar com o olhar maldoso e enojado da governanta má da mansão e se adaptar à nova vida como Mrs de Winter.
Não parece nada demais, quando você o lê assim, mas esse livro é na verdade estupidamente inovador, mesmo tantos anos depois. Entre tantas viradas surpreendentes, Rebecca também tem detalhes lindos, instigantes e originais.
Nossa protagonista aqui, também narradora, não tem participação nenhuma na trama. Sua personalidade fraca e ingênua chega a ser dolorosa de ler. Uma mulher sem nome, porque ela não sabe se denominar, vive se comparando à figura da viúva e à presença constante dela na mansão, mesmo estando a mulher morta, debaixo d'agua há praticamente um ano.
Você sente dó dela, dessa mulher sem nome, sem atitude, que se sente humilhada e subjugada o tempo inteiro. Como já disse, dói ouvir os pensamentos dela, os delírios, enquanto ela constantemente imagina o que os outros estão pensando, como a diminuem e a comparam com a imagem da antiga Rebecca. Ela tem uma visão deturpada da realidade, formada pelo medo constante de não ser o suficiente e de se sentir inferior ao marido. Tão assombrada pela possibilidade dele lembrar de sua ex e dessa ser o único amor da vida dele, que ela deixa de ver a verdade; que, se desconfiarmos um pouquinho sequer da versão do narrador, somos capazes de ver bem antes, nos detalhes, que Maxim detesta Rebecca. Que Rebecca era fria, calculista, controladora e uma mulher cruel.
Se formos ser sinceros, Rebecca é a protagonista verdadeira da história e também seu antagonista principal. Ao mesmo tempo que toda a trama gira ao redor da existência de Rebecca, ou melhor, dos vestígios que a existência dela deixou pela casa, nas pessoas e em Mrs Danvers (a vilã), o seu fantasma é o que mais aterroriza os personagens e o leitor.
Se eu pudesse definir essa leitura com uma palavra, escolheria: fantasmagórica. Porque é isso que sentimos ao ler o livro, que estamos constantemente sendo assombrados pelo fantasma de Rebecca, mesmo que ele só exista figurativamente, através da fala do narrador. Ele está ali, no encalço, e a existência dessa mulher foi tão forte, tão vivida, que em algum momento, durante os devaneios da atual Mrs de Winter, você como leitor se questiona se de fato Rebecca não está viva, pregando em todos uma grande peça.
É uma história de fantasmas, a mais interessante que já li, pois a alma de Rebecca não precisava estar presente no local, para que as lembranças que todos tinham dela não a transformasse em uma constante presença. Uma constante assombração. Me fez refletir, sobre como nos fazemos presente pelos lugares em que passamos, como ficariam as pessoas que nos amam.... ou nos detestam, depois de partirmos. Ou como nós mesmos não somos amaldiçoados pelo nosso passado e pessoas que passaram por ele.
O livro tem um ritmo interessante, momentos de imensa tensão em que você espera pelo pior acontecer, e momentos de imensa calmaria quando Mrs de Winter expressa completo bucolismo na narração. Soube apreciar quando Daphne du Maurier acelerava os fatos, me deixa apreensiva, esperando pelo pior, como na viagem de Maxim e Mrs de Winter de volta a mansão; foi uma ferramenta importantíssima pro suspense do livro.
Não tem como negar a genialidade e beleza da sua escrita, como ela pintou Manderley de maneiras extraordinárias para a nossa imaginação; como ela soube disfarçar um grande thriller com muita classe e delicadeza; como ela representou o medo, a despersonificação e a paranoia de uma mulher inocente que só gostaria de ser amada e, igualmente, lembrada.