Kath 15/05/2023
Tão atual...
Aos poucos, bem devagar mesmo, vou me inteirando da literatura brasileira. Comecei com Machado na escola, por espontânea vontade, sem a obrigação das aulas de literatura que, na minha época, não existiam e fiquei apaixonada pela narrativa lírica e fascinante dele em Iaiá Garcia e Helena. Depois tentei passar para José de Alencar e seu O Guarani, mas não me caiu muito bem, talvez porque, na época, eu não fosse madura o bastante para entender o propósito daquela obra. E, de fato, por essa impressão ruim, nunca retornei ao livro quando mais velha, porque a prosa de Alencar não me cativou. Ao longo da minha vida acadêmica, pude conhecer outros autores nacionais como Castro Alves, Vinícius de Moraes, Lygia Bojunga, Luis Puntel e o maravilhoso Aluísio de Azevedo com seu O Cortiço, obra pela qual me encantei.
Então, após revisitar Machado em O Alienista, obra que ainda não conhecia, decidi tentar Lima Barreto, autor ainda não lido por mim, mas muito comentado na faculdade e o escolhido foi O Triste fim de Policarpo Quaresma. Não tenho certeza se a escolha foi consciente ou apenas porque achei o volume grátis na Amazon meio sem querer.
A história acompanha Policarpo, um funcionário público completamente apaixonado pela sua pátria. Seu desejo era servir as forças armadas, mas por não ter passado nos testes médicos, precisou se contentar com seu emprego comum, no qual era muito dedicado ? embora fosse um trabalho enfadonho ? por ser sua maneira de contribuir para o crescimento do Brasil.
Policarpo passava horas estudando sobre o país e, quanto mais aprendia, mais seu desejo de tornar o Brasil uma nação forte e independente aumentava, suas ideias começaram a ficar cada vez mais descontroladas até chegar ao ponto de escrever aos superiores pedindo que o tópico guarani, língua original do Brasil, fosse tomada como o idioma oficial do país, algo que o tornou chacota em todo o Rio de Janeiro. Mas foi quando, por distração, redigiu um importante documento em tupi-guarani que sua situação piorou.
Passando um período em um hospício por própria internação, os únicos a visita-lo eram sua afilhada Olga, junto ao pai, e seu amigo músico Ricardo Coração dos Outros, outrora seu professor de violão. Quaresma, embora não "curado" de seu patriotismo fanático, ao menos tomou a lição de freiar seus impulsos visionários e, assim, optou por se refugiar no campo sob o ideal de tornar-se exemplo a outros para levar a agricultura do país a um novo patamar e, dessa forma, tornar o Brasil uma nação avançada e autossustentável.
Contudo, logo Quaresma descobre que seu mundo utópico e idealista não se encaixa na realidade. São os homens de poder que decidem aqueles que prosperam e os que definham e são esses mesmos homens que delineiam o futuro da pátria que ele tanto ama. Todavia, por sua ingenuidade infantil e sua pureza de intenções, ele não se detém de fazer sua parte e vibra com cada pequeno sucesso.
Quando a república começa a se instalar, lentamente, no Brasil sob a presidência do marechal Floriano Peixoto, marinha se revolta numa tentativa de expulsar o militar da presidência. Não uma vez, Barreto se refere ao homem como ditador. Assim, vendo a oportunidade de ser útil a sua pátria num momento difícil, Quaresma se alista no exército em favor da República, mas tanto sua inexperiência quanto seus ideais patrióticos vão acabar condenando-o ao jugo de uma nação que só se importa com sua própria mediocridade.
"O casamento já não é mais amor, não é maternidade, não é nada disso: é simplesmente casamento, uma coisa vazia, sem fundamento nem na nossa natureza nem nas nossas necessidades." P. 159
Ler esse livro me causou diferentes emoções. Apesar de ele ser bem engraçado em várias partes, o humor não me tocou. Mas o tom mais filosófico sim. A prosa poética e afiada de Barreto por vezes era um soco no estômago. Policarpo tinha suas vezes de Don Quixote, a loucura idealista por uma pátria perfeita e estável que, até poderia ser real, se as pessoas que a compõem fossem leais a si mesmas e ao desenvolvimento do todo e não de seus próprios umbigos. Mas nós sabemos que não é assim que acontece.
O livro foi escrito no final do séc XIX, mas soa tão atual como nunca. Tem seu tom acido e irônico diversas vezes, poderia muito bem ter sido escrito na época da ditadura, e muitas passagens são até um pouco assustadoras por se encaixarem como luva na nossa sociedade "avançada". Carregado de personagens interessantes, por vezes propositadamente caricatos, Triste Fim de Policarpo Quaresma é o tipo de livro que acho todo mundo devia ler.
Seu protagonista é um tolo idealista, por vezes patético, mas nos encanta pela sua inteligência aguçada, a inocência infantil e o empenho com que se dedica aos sonhos. Por isso, acompanhar sua saga e por vezes comovente e seu desfecho nos deixa um gosto amargo de uma realidade ainda muito jovem na nossa história. Recomendo.