Emilly 13/10/2021
Não, caro leitor, Quaresma não seria bolsominion
Primeiramente, cabe uma explicação acerca do título: ao cá vir registrar a leitura após seu termino, vi uma certa resenha que resume da maneira mais rasa e simplória, completamente desconexa ao conteúdo da obra, a complexidade do personagem principal de Lima Barreto. Para fim de entendimento da minha contraposição às ideias contidas na resenha do outro leitor, título e conteúdo inicial apresento a seguir:
"'Quaresma, certamente, votaria no Bolsonaro.'
O livro conta a história de um homem patriota.
Mas não é qualquer patriota: ele é mais que um homem hétero usando a camisa da seleção brasileira para comprar pão.
Quaresma é um aficionado pro TUDO que é feito no Brasil, por brasileiros e com matéria prima nacional: comida, roupas, aparelhos, móveis, manifestações culturais etc.
Um homem de meia idade culto e estudioso.
Esse amor profundo, que poderia ser resolvido na terapia, leva o servidor público aos seguintes extremos: da aversão à política, à luta armada em defesa de um político."
Afirmo, entretanto, que Quaresma nada se assemelha a essa imagem feita pelo colega de leitura. Policarpo, como já denuncia o título da obra, teve seu "triste fim" porque suas pretensões a respeito da nação não se concretizaram. Diferentemente do Exmo. Presidente da República e de seus apoiadores, o major via no Brasil, assim como em seu povo, um potencial para feitos extraordinários. Pode-se depreender da exposição de pensamentos do personagem que ele nutria por seus compatriotas e por seu país uma admiração exagerada. O Sr. Bolsonaro, durante a vigente pandemia, já vociferou em mais de uma ocasião seu desprezo pela vida brasileira e, anteriormente a isso, já demonstrava, sem eufemismos, seu igual menosprezo pelas culturas indígenas originárias e pelo bem estar geral da nação. Policarpo, embora erroneamente ufanista a princípio, tinha em si certa inocência que carece no Presidente, motivo pelo qual acreditara tão ferrenhamente em ideias irrealizáveis (e.g. o tupi como língua nacional).
Pode-se ter aversão ao termo "patriota" dada a atual situação da política nacional. Compreensível. Contudo, trazer essa obra de forma equivocada aos embates contemporâneos e resumi-la a isso é um erro tremendo. Barreto ironiza, por meio da visão preconceituosa da sociedade em torno do major, as figuras a quem duras críticas são merecidas: os homens em suas ganâncias provincianas, o reduzido papel da mulher nesse arranjo patriarcal e o descaso e a tirania do governo. O funcionário público estudioso é alvo de chacota entre seus pares por conta de seus sonhos patrióticos. Esse sujeito que via, iludido, um futuro brilhante para o País a partir dos conceitos encontrados em livros, pouco aplicáveis naquela realidade tupiniquim, sofreu de um episódio de insanidade porque foi visto como um tolo ao redigir um documento em tupi. O senhor de meia idade do livro, em oposição àquele que ocupa a cadeira presidencial na atualidade, deparou-se com a vivência desoladora do povo e tentou, ineficazmente, contatar o Marechal para propor reformas. Veja bem, um indivíduo que redigiu a Floriano Peixoto (na ficção, claro) uma proposta de reforma agrária para dar aos pobres um canto de terra onde plantar dificilmente poderia ser confundido com apoiadores das ideias do "Messias" das eleições do ano de 2018.
Quaresma, sim, foi um apaixonado por aquilo que é brasileiro. E pergunto, consternada, se deveria ser diferente? Concordo, se essa for a posição crítica, que ele não deveria ter levado suas paixões ao extremo. Porém, uma interpretação que aborda somente esse ponto volta-se para a direção errada. "Esse amor profundo, que poderia ser resolvido na terapia", como diz o outro leitor em sua resenha, na verdade não precisaria de terapia alguma. Ou seria, nesse sentido, necessário que Ariano Suassuna e seu Movimento Armorial tivessem sido combatidos e levados todos a uma sala de consultório para compreensão do porquê defender a preservação da cultura popular nordestina? Teria sido Suassuna também um mero visionário, alguém que deveria ter sido alvo de risos e de escárnio como foi Policarpo? Digo, novamente, com o risco de ser redundante, que essa é uma visão rasa.
Talvez por estarmos tão "ok" com estrangeirismo, com a influência esmagadora e aniquiladora de outras culturas sobre a nossa, parece-nos estranho esse personagem tão peculiarmente amante do que é nacional. Quaresma tem em seu fim não a "defesa de um político", mas a defesa do que ele acreditou como sendo a possibilidade de melhora da nação. Analogamente àqueles que votaram no genocida que ocupa o palácio do planalto e tão logo se arrependeram, Policarpo Quaresma não pode ser isento de suas escolhas, mas merece ser entendido. Deve-se, portanto, reconhecer que ele percebeu a falha em suas posições e seu fim infeliz deu-se justamente em ocasião dessa percepção.
"A pátria que quisera ter era um mito; era um fantasma criado por ele no silêncio de seu gabinete. Nem a física, nem a moral, nem a intelectual, nem a política que julgava existir, havia. A que existia de fato, era a do Tenente Antonio, a do Dr. Campos, a do homem do Itamarati.
E, bem pensando, mesmo na sua pureza, o que vinha a ser a pátria? Não teria levado toda a sua vida norteado por uma ilusão, por uma ideia a menos, sem base, sem apoio, por um Deus ou uma Deusa cujo império se esvaía?"
Policarpo acabou arrependido do caminho que fez tomar seu patriotismo exacerbado. Sozinho, triste e desiludido: esse foi seu fim.