spoiler visualizarLucas 18/06/2024
"na beleza deste céu, onde o azul é mais azul" ?
Hoje em dia a definição de patriota está muito enviesada. define-se patriota não aquele que escolheu priorizar a sua terra natal e valorizá-la, mas aquele que defende ideias voltadas para um segmento político bastante específico. Policarpo Quaresma é a pessoa que defende sua terra e a exalta de todas as maneiras possíveis. em suas palavras, ?tendo o nacional, não compro o estrangeiro?.
no entanto, o patriotismo exacerbado do major Policarpo (major porque ganhou equivocadamente essa alcunha e não porque está ligado às forças militares) o levou a lugares que nunca visitou, pelo contrário, evitava-os pelo seu estilo de vida.
lendo pela primeira vez um romance de Lima Barreto, meu autor clássico preferido, pude me encantar mais uma vez com a sua literatura tão gostosa. a despeito de muitas palavras não mais cotidianas e pra mim desconhecidas, a narrativa de Lima Barreto flui muito bem. não parecia que eu estava lendo um romance de 1911. antes, eu só tinha lido muitos contos do autor e aqui ele manteve a mesma essência pelo qual o reconheço: críticas à sociedade e comportamentos da época em que são ambientadas suas histórias, narração fluída, ironias mil, introdução de personagens que em alguma medida vão acrescentar pouco - mas não por isso menos cativantes - e certa comédia em determinadas situações.
o primeiro episódio - vexatório - que Policarpo nos apresenta como de explícito patriotismo, é o de quando escreve para a Câmara dos Deputados um requerimento pedindo que o idioma oficial do Brasil mude para tupi-guarani, uma vez que português era uma língua estrangeira e que fomos forçados a aprender quando éramos ainda colônia de Portugal (ele não deixa de estar certo em seus argumentos), mas qual não foi a risadaria quando o requerimento ganhou fama através dos jornais e o melhor passou a ser apontado pelas ruas como motivo de riso geral. esse absurdo causou nele bastante vergonha e tristeza.
pra mim, a literatura não serve apenas com o propósito de entreter, mas sim de fazer pensar também. e assistindo à novela Laços de Família, numa determinada cena, uma personagem ostenta a felicidade de ter sido chamada de 🤬 #$%!& , pois isso pra ela foi um arraso, chamou muito a atenção e ficou comentada. já recentemente, a esposa de um participante do Big Brother se separou enquanto o ex-marido estava confinado, pois ele estava dando em cima de outra participante. inicialmente foi um vexame pra ela, mas em nenhum momento ela pensou em não monetizar o vexame, ganhando muito dinheiro com toda a exposição. e a coisa que eu mais acho deliciosa na escrita de Lima Barreto é como ele consegue se manter tão atual e ao mesmo tempo fazer o leitor refletir a respeito de comportamentos, seja da época em que o texto foi escrito, 1911, ou tempos depois, 2000, ou mais ainda no futuro, 2024.
é praticamente impossível não achar na obra de Lima Barreto semelhanças com o tempo atual. críticas à sociedade e aos governos e governantes são contundentes e assustam, pois faz parecer que seu texto foi escrito ainda semana passada.
?? Eu não posso compreender esse tom divino com que os senhores falam da autoridade. Não se governa mais em nome de Deus, por que então esse respeito, essa veneração de que querem cercar os governantes??
o livro tem uma cadência pouco ágil, mas acredito que isso era uma constante na época em que foi escrito. antigamente, a vida não acontecia da maneira como ocorre hoje e isso talvez explique o ritmo da leitura. Lima Barreto vai contra todo o estilo de uma época ao usar uma linguagem bastante popular, fugindo do academicismo ou do eruditismo que as obras da época apresentam. posteriormente fiquei sabendo que para este livro a intenção era que fosse o mais popular possível, embora eu já estivesse familiarizado com a sua linguagem. apesar de ocasionalmente usar palavras que hoje em dia já não são mais usadas com frequência, em detrimento de outras, a leitura não fica comprometida, pois a edição é recheada de notas de rodapé, o que explica muita coisa e dá muito contexto a respeito do período em que a obra é ambientada.
um ponto histórico para entender a conclusão do livro é a revolta da armada, ocorrida no Rio de Janeiro entre 1981 e 1894, sob a gestão do Mal. Deodoro da Fonseca e depois do Mal. Floriano Peixoto. o primeiro renunciou devido à pressão causada pelos marinheiros que queriam mais participação nas decisões do governo e igualdade salarial com o exército. já o segundo conseguiu sufocar não apenas essa revolta quanto outra que acontecia no sul, chamada Revolução Federalista. por isso, Mal. Floriano Peixoto ficou conhecido como o ?marechal de ferro?, por ser muito violento em suas decisões. eu tinha um professora de história que costumava falar que a história sempre se repete, mudando apenas os personagens e o tempo em que ocorre. por ser contra o autoritarismo de Floriano Peixoto, com quem Policarpo Quaresma tinha relação, ele teve seu triste fim.
eu apenas não esperava que o triste fim do major Policarpo fosse de fato triste. eu esperava alguma coisa menos trágica, mas levando em consideração todo o contexto em que o major estava inserido, qualquer coisa que não fosse o seu fim seria inverossímil. o autor nos lança um questionamento muito contundente na reta final do livro: de que adiantou a Policarpo querer tanto exaltar a sua pátria amada? de que serviu tanta leitura a respeito dos rios, da geologia, da agricultura, política e cultura da nação? em que lhe serviu todo esse conhecimento no derradeiro momento de seu fim? no final de tudo, todo esse conhecimento era algo que apenas ele valorizava, enquanto os demais a sua volta faziam chacota de sua incansável sede de sabedoria brasileira. deixou de aproveitar sua vida, teve poucos amigos e poucas boas lembranças. isso tudo fala a respeito da perseguição incansável e cega de um sonho.
Major Policarpo Quaresma tentou várias vezes vivenciar sua nação em suas potencialidades e possibilidades, mas falhou em todas elas ou virou chacota na maioria. e a cada falha ele morria um pouco por dentro, até que findou aquilo que era insubstituível.
há momentos em que se precisa recalcular a rota, mudar os planos ou mesmo desistir de um sonho. não é nenhum erro ou fracasso desistir de algo que se quer muito. ainda mais quando a vida, como a vida de Policarpo Quaresma, dá sinais de que é melhor parar.