gabriel 10/02/2022
Nunca estude tupi
Achei o livro ótimo, é meu primeiro contato com o autor e estou surpreso com a qualidade da sua escrita. É muito melhor do que eu imaginava, os parágrafos se desenrolam muito bem e são muito agradáveis de ler. É um estilo que transita entre o poético e o irônico, ele às vezes exagera na "pompa" com que descreve as coisas, mas no geral ele consegue equilibrar isso com um senso de humor ótimo.
É um livro que dá vontade de ler mais de uma vez, não só para rever e notar alguns detalhes, como para ter contato novamente com a sua escrita, que é muito prazerosa. Certamente irei fazê-lo depois de um tempo.
A nota é um tanto arbitrária, é um quatro estrelas que pode ser tranquilamente visto como um cinco estrelas. Só não coloquei a nota máxima por motivos pessoais, algo nele não me pegou tanto, não me deu aquele envolvimento que alguns livros já me deram, então procurei marcar isso. Mas pode ser um problema mais meu do que do livro, o livro em si é ótimo e adorei a leitura.
Policarpo é um sujeito ingênuo, um nacionalista inócuo, que desperdiçou a vida estudando assuntos inúteis sobre o país. Ao ser envolvido em uma série de acontecimentos, vê o seu idealismo se desfazer diante de uma realidade fria e cruel. O livro, no entanto, trata este tema com muito bom humor, e é no geral um livro bastante engraçado.
Algumas cenas são impagáveis. As descrições de certo político (omito o nome para evitar spoilers) são ótimas e é um dos melhores momentos do livro. A ironia está por todos os lados, muitas vezes envolvendo militares (o que dá um ar "quixotesco" ao livro). Major, o personagem Policarpo se vê envolto numa guerra às formigas, numa fazenda na qual se meteu, sem qualquer experiência no assunto.
Policarpo talvez seja uma espécie de "nowhere man" nacional, aquela figura tão bem descrita por John Lennon em famosa música. Faz as coisas do nada, estuda muito, aplica muito método sobre coisas inúteis, e nenhum sobre coisas factíveis... um sonhador que cativa, com o qual facilmente nos identificamos. Mas que também nos dá pena e nos desola.
O livro tem um tom pessimista e crítico, transita por muitas personagens e consegue manobrar bem entre todas elas. Com o risco de soar anacrônico, digo que enxerguei uma crítica ao sexismo da época (ou machismo, se preferir). Há muitas cenas envolvendo casamentos indesejáveis, um modo de opressão da mulher. Ele trabalha bem este aspecto, inclusive envolvendo uma situação-chave bem importante.
Há análise psicológica e social, lembrou um pouco Machado de Assis neste sentido, mas sem ser tão mordaz ou sutil como este. Aqui ele joga mais na cara mesmo, o que não é pior nem melhor, apenas diferente. Achei muito bom também. E como no velho bruxo, a classe média aqui é retratada como interesseira e fútil.
O livro me lembrou um pouco o filme "Cronicamente Inviável", de 2000. O filme tem um pessimismo bastante similar ao do livro, ainda que trate de temas e de uma época diferente. Aquela sensação eterna de que o Brasil "não dá certo" (o que eu não concordo, mas é um sentimento compreensível).
Jamais estude tupi. O personagem principal é zoado e diminuído por este pequeno hábito, de estudar a língua mais importante das antigas nações indígenas. Uma pequena anedota pessoal, mas também já passei por isso. Fiz um semestre de tupi antigo na FFLCH-USP, com o lendário professor Eduardo Navarro, talvez o maior especialista da língua no país. Obviamente virei piada entre amigos e familiares. Até hoje, lembram deste fato ocasionalmente, sempre em tom de humor.
Apesar de eu não ficar bravo, e até rir com o fato (e dar munição para as brincadeiras), não deixa de ser um pouco triste. Por que isso deveria ser motivo de piadas, afinal? A Nova Zelândia tem muito respeito pelo maori (a língua dos nativos) e a ensina normalmente; o país basco se orgulha de sua língua, etc etc. Isso mostra que, por trás de muitas brincadeiras, opera uma espécie de "maldade antiga", um descrédito por nossa cultura. Aqui, o livro a retrata muito bem.
É um livro, então, com muitas camadas, um olhar cuidadoso e inclusive bem humorado por várias facetas da nossa nacionalidade, do nosso pessimismo, estagnação, a burocracia que emperra e oprime, coisas que permanecem em alguma medida até hoje.
É certo que evoluímos muito, somos um país industrializado e com cidades modernas, porém a identificação que o livro gera, mostra que ainda temos muito daquela realidade descrita por Barreto. Isto, unido à habilidade literária do autor, torna o livro imperdível.