Lisboa 31/05/2021
Caim e Abel, o arquétipo dos irmãos hostis.
Terminei faz algumas semanas essa leitura, a minha introdução apropriada ao icônico Machado de Assis, em outras leituras ('O pai', e, 'Memórias póstumas de Brás Cubas') acabei não me engajando e findei adiando essas outras obras.
Mas, fico feliz que comecei a lê-lo por esse livro. Primeiro foi interessante perceber o contexto em que o enredo se desenrolava, o pano de fundo da narrativa era a transição histórica que ocorreu no século XIX no Brasil, de Monarquia para República. Foi no mínimo preocupante perceber como essas mudanças revolucionárias acontecem "despercebidas", sem entrar no mérito se é uma mudança positiva ou negativa, lendo tive a impressão que tais revoluções geralmente acontecem gradativamente e quase imperceptíveis em meio às nossas aflições e rotinas. O tom de incerteza e dúvidas era muito bem construído em relação ao novo regime governamental, a sua permanência ou provável instabilidade, a polarização que gerou e percepção que cada um tinha do que poderia acontecer, (o trecho do muro pichado e a polaridade entre os irmãos em relação ao governo talvez sejam a melhor forma de ilustrar isso.) Entretanto, textualmente sempre era tratado como secundário e não era a grande prioridade ou preocupação de todos. Fazer a associação com a república do Brasil no século 21, depois de ditadura nos anos 80 e com a atual crise política que enfrentamos nos últimos anos ... Preocupante.
Pois bem, a ira entre os irmãos Pedro e Paulo e o triângulo amoroso com Natividade (? N lembro se é o nome da personagem mesmo, tlvz Natividade fosse a mãe, mas enfim) é o norte do livro, com personagens interessantes como o conselheiro Aires e familiares das de Pedro e Paulo, e tb Natividade (?); Aliás, Aires é um personagem cativante e querido por todos, imagino que tanto por leitores como para os demais personagens do livro, um dos melhores momentos do livro na minha opinião, e que demonstrou muito bem a famosa ironia e humor marcadas nas obras de Machado, é o trecho em que Aires encara um jumento e a partir do olhar do jumento deduz o que o mesmo gostaria de dizer, hahahaha soltei uma boa risada ao ler, memorável.
Enfim, o relacionamento dos irmãos ao meu ver nunca foi disfuncional, era nítida a competitividade, implicância e até certa hostilidade, mas não identifiquei ódio ou desdém, talvez de forma estranha fosse assim que demonstrassem admiração um pelo outro, parafraseando Nietzsche, devemos aprender a arte de amar principalmente os nossos inimigos. E é simbólico que a competitividade dos gêmeos se direcione para a conquista da querida Natividade, pensando em termos evolutivos, são as mulheres que incorporam o papel da mãe natureza e fazem a seleção natural, escolhem o mais apto e adaptado para replicar genes. Era a prova peremptória para eles saberem quem fez o melhor sacrifico, fazendo uma alusão aos sacrifícios de Caim e Abel que eram aceitos ou não, e ninguém quer ser o não escolhido e ressentido Caim.
Apesar da analogia acredito que nenhum dos irmãos fosse o Caim, como a vidente disse para a mãe dos gêmeos: seriam grandes homens futuramente, e foram, mas sem querer entrar em detalhes da narrativa, talvez a competitividade entre eles fosse confundida como hostilidade pela mãe, talvez em alguns momentos foram hostis entre si, mas o final me fez acreditar que o respeito e admiração se fortaleceu entre eles, e que apesar dos apesares, a relação entre eles nunca foi de ressentimento e ódio apenas uma pueril busca infantil por aceitação e destaque em sua forma última, que acaba inevitavelmente sendo um axioma abstrato e inalcançável, indo para o campo das ideias, dos princípios e valores. Talvez o "melhor" deles não deveria ser escolhido por terceiros mas sim pela incessante busca racional da superioridade.
Lindos trechos escritos por Machado de Assis, lírica e poeticamente impecáveis, bem reflexivos também. Achei um ótimo livro!