Coruja 14/02/2019Escolhi esse título para o tema do mês no Desafio Corujesco porque, com ele, eu faria um verdadeiro massacre de coelhinhos com uma só cajadada (nada contra coelhos, a culpa é do ditado popular). Primeiro, esse é um dos poucos romances de Machado que eu ainda não tinha lido (na época de colégio li todos que eram indicados em vestibular e mais alguns por conta…); segundo, ele seria um dos livros debatidos esse ano no Clube do Livro de Bolso e, terceiro, pela sinopse, era um livro que tratava da política na virada da monarquia para a república e questões de política em romances sempre me interessam.
Olhando para o título bíblico e tendo uma ideia do estilo machadiano, comecei a leitura com a expectativa de que Esaú e Jacó seria uma mistura do tom picaresco de Memórias Póstumas de Brás Cubas (porque a política brasileira merece todo o sarcasmo do mundo) e a rivalidade entre gêmeos apaixonados pela mesma mulher no melhor estilo folhetinesco de Dumas, em Os Irmãos Corsos. Contudo, o maior erro que você pode cometer, como leitor, é se deixar começar uma obra de um autor como Machado com expectativas, achando saber o que o espera. Por isso mesmo, demorei a conseguir engatar a leitura e entender do que se tratava o livro.
Esaú e Jacó começa se dizendo um volume de anotações ‘encontradas da mesa do Conselheiro Aires’, quase como se um diário do personagem. Mas o verdadeiro narrador da história é o próprio autor Machado, onisciente de pensamentos e anseios dos personagens, muitas vezes quebrando a linearidade da história com intervenções diretas ao leitor para discutir a construção do romance. Essa metanarrativa é um recurso típico machadiano, embora não seja uma característica muito presente no Realismo - talvez por isso mesmo Machado seja considerado um autor ‘fora da curva’, que não se adequa de fato a rótulos, escolas ou categorizações. Machado é uma categoria em si mesmo.
Esse foco narrativo pode tornar a leitura um pouco confusa para quem não está preparado: a história dos irmãos Pedro e Paulo, sua rivalidade e sua paixão pela jovem Flora é muitas vezes interrompida por episódios aparentemente alheios e capítulos que são pequenos ensaios sobre tipos sociais e outras aleatoriedades. O próprio fio narrativo não segue um padrão; não existe realmente uma causa primeira para o embate fraterno, não há resolução para a parte romântica tendo em vista a indecisão de Flora entre seus pretendentes, não há um clímax nem mesmo quando do golpe que derruba a monarquia - algo que vemos apenas de notícias em jornais e comentários entre personagens, sem nunca aparecer em termos de ação na história.
Contudo, quando você começa a refletir sobre a simbologia, sobre o que cada um desses personagens significa numa grande alegoria da história política brasileira, faz extremo sentido que a transição da Monarquia para a República seja transformada num ‘não-evento’. Como muito bem ilustra o episódio (hilariante, minha cena favorita do livro!) da tabuleta do Custódio, dono da Confeitaria Império - nome algo complicado para o cenário político da ocasião - o grosso da população muito pouco se importou com a mudança do governo, mais interessada em como as aparências repercutiam em seus negócios pessoais. E, se Custódio representa o povo, preocupado consigo mesmo e alheio à realidade do país, Flora e Natividade - a mãe dos gêmeos - são facetas do Brasil, com os irmãos representando os sistemas políticos que se apresentam.
Natividade - e que bela escolha de nome para o caso - é a “Pátria Mãe” que sonha em ver os filhos ‘serem grandes’, como vaticinado pela Cabocla do Castelo, espécie de pítia moderna que não apenas lhe promete a grandeza perseguida, como também lhe incute a ideia da rivalidade. Natividade passa o tempo a sonhar com as coisas futuras, mas também a se preocupar com a possibilidade de conflito entre os irmãos. Por ironia, Pedro e Paulo descobrem nos medos da mãe uma maneira de conquistar favores e encenam um antagonismo que, ao menos a princípio, não é real.
Alimentados pela ambição dos pais e pelas promessas de grandeza que lhes foram feitas em berço esplêndido, os gêmeos passam a se interessar por política. Pedro, médico, mais conservador e dissimulado, afirma-se monarquista. Paulo, advogado, liberal e impulsivo, vincula-se aos republicanos. Começa a dissidência real, mas é com a chegada de Flora e a paixão dos dois por ela, que a disputa começa.
Flora é o desabrochar de uma nação; talvez a própria figura da República, se pensarmos em Natividade como a imagem do Império. A inexplicável, nas palavras do Conselheiro Aires; a indecisa, na opinião de todo leitor. Flora é bela, inteligente e apaixonada pelos gêmeos. E esse é o grande problema da relação - ela gosta de ambos, não consegue ver um sem o outro, não é capaz de escolher entre eles. E aí fica a questão: a indecisão é por eles serem iguais em tudo ou por serem tão diferentes que só há uma versão completa quando se somam ambos?
Por boa parte da história, o autor parece tentar nos convencer de que Pedro e Paulo são, de fato, diferentes, ainda que semelhantes na aparência. Mas essa é a suprema ironia de Esaú e Jacó: trata-se de uma falsa dualidade, uma contradição apenas aparente. Talvez seria interessante lembrar das leis da atração magnética: são os polos iguais que se repelem. Pedro e Paulo se apresentam como diferentes em suas ideias, no discurso; mas são idênticos na prática. Destarte, explica-se a indecisão da jovem nação: se apenas mudam os nomes, mas permanecem os mesmos atores, a mesma velha política, o que há, exatamente, a escolher?
Esse foi o penúltimo livro de Machado, mantendo a ironia que era sua característica, mas perdendo um pouco do humor picaresco de um Brás Cubas ou mesmo Quincas Borba. É uma história mais melancólica, talvez até amarga em suas conclusões. Mais de cem anos depois, contudo, permanece atual e verdadeiro. Nosso país continua a ser uma promessa, um ‘gigante’ do qual se fala continuamente que acordou, ainda que nosso hino nos afirme que está deitado eternamente em seu berço esplêndido. Nossos políticos continuam a se anunciar como novas versões de uma nova política, enquanto repetem as mesmas práticas pelas quais condenam uns aos outros. E assim por diante. No final das contas, Esaú e Jacó foi publicado em 1904, mas, ao ligar o noticiário, penso que ele poderia muito bem ter sido escrito no mês passado. Se mérito do Machado de Assis ou demérito de nossa política… fica para a opinião do leitor.
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