Tauami 17/11/2016
O monstro em cada um de nós retratado no livro clássico de H.G. Wells
Escrito em 1896, A Ilha do Dr. Moreau é tido como uma das obras literárias basilares para os que se dizem entusiastas do gênero terror e ficção científica. Quais seriam as razões que elevam esse livro a tal patamar? Antes de irmos às respostas dessa questão, se faz necessário explicitar as condições históricas em que o livro foi produzido.
Vivissecção é uma determinada conduta cirúrgica feita com propósitos experimentais em organismos ainda vivos. Normalmente, esse processo ocorre em seres que possuem sistema nervoso central para análises mais apuradas sobre as reações dos experimentos efetuados. Atualmente, esse processo é rigidamente controlado por um conselho de ética que estipula normas para que esses processos sejam feitos dentro de condições mínimas de conforto para o ser que está sendo vivesseccionado. Com os avanços da tecnologia, espera-se que esse tipo de procedimento seja abolido. Entretanto, esse movimento contrário ao procedimento é extremamente recente.
A primeira organização a ser criada com o claro intuito de combater a vivissecção foi a NAVS (National Anti-Vivisection Society). Fundada em 1875 por Francis Power Cobbe, no Reino Unido, essa organização criou um profundo e intrincado debate com a sociedade médica que até aquele momento possuía como um de seus fundamentos a prática da vivissecção exploratória. Durante o século XVI, Andreas Vesalius, considerado um dos pais do estudo da anatomia humana, acreditava enfaticamente que estudantes de medicina deveriam se utilizar de animais vivos para aprimoramento de seus conhecimentos sobre anatomia ao invés de debruçar sobre ilustrações feitas em livros. Entre as conquistas obtidas pela NAVS, está incluída a criação de uma ação (Cruelty to Animals Act 1876), aprovada pelo parlamento do Reino Unido, que regulariza os termos em que a vivissecção se torna legal, nos termos da lei. Posteriormente (1898), a British Union for the Abolition of Vivisection também foi criada, endossando os movimentos que lutam até os dias de hoje contra essa prática.
H.G. Wells, que já havia alcançado notoriedade com A Máquina do Tempo, publicada em 1895, estava ciente dessa crescente discussão sobre os limites da intervenção humana. Lembremos que autor era letrado nas ciências biológicas, tendo sido orientado pessoalmente por Thomas Henry Huxley, um conhecido biólogo evolucionista que influenciou profundamente o sistema educacional público inglês. Assim sendo, não há como negligenciar esses acontecimentos na construção da narrativa de A Ilha do Dr. Moreau.
O livro é trabalhado como se estivéssemos diante de um fato ocorrido na vida de Edward Predick, um rapaz abastado que é resgatado do mar após sofrer um trágico naufrágio. No navio de seus salvadores, Predick observa um desconforto geral por parte da tripulação em relação a um de seus passageiros. M’ling, devido sua aparência bestial, acompanhado de Montegomery, médico responsável por manter Predick vivo após o resgate. Ambos esperam a chegada do navio à ilha onde moram.
A medida que os pormenores dos experimentos de Moreau vão sendo expostos, ganhamos o conhecimento de que ele está conduzindo a criação de seres humanoides a partir de animais comuns e que seu sucesso havia sido tanto que esses seres desenvolveram, por meio de preceitos de cunho religiosos postulados pelo próprio Moreau, uma organização social própria.
A trama é trabalhada a partir das memórias de Predick a respeito dos acontecimentos que o cercaram em sua estadia na ilha, o que faz com que o leitor tenha que se ater a ideia de que todo o desenrolar da narrativa é um constructo partindo de um único ponto de vista. Através dos olhos de Predick, enxergamos as abomináveis criaturas feitas pelo injustificável narcisismo de Moreau. Vemos o inconsolável Montegomery se digladiando contra a correspondência entre ele e as bestas. Vemos a similitude entre os preceitos morais pífios impostos por Moreau a sociedade das criaturas e os preceitos morais que regem o nosso mundo dito civilizado.
O tempo e o espaço do livro estão profundamente relacionados. Quando nos lembramos de algo, não conseguimos resgatar todos os dias do passado, apenas aqueles acontecimentos que possuem certo peso para nós. O livro traz isso. Embora Predick passe praticamente um ano preso na ilha, a narrativa não tem tanto volume como normalmente essa quantidade de tempo pediria. Isso decorre em grande parte devido ao local onde ele se encontra. Uma ilha isolada e hostil não é um bom lugar para nutrir boas recordações. Tive a impressão de que, a todo o momento, Wells buscava metaforizar a memória através do que é a ilha, um pequeno punhado de terra (memória) cercada por todos os lados de água (acontecimentos reais).
Agora, voltemos à questão: O que torna A Ilha do Dr. Moreau uma leitura obrigatória? Bom, alguns poderiam dizer que a grandiosidade do livro se encontra na necessária comparação da organização do povo bestial e do mundo civilizado. Outros colocariam que é a inadiável queda do ser humano quando ele busca usurpar o trono de Deus, representado pelo trágico final do Dr. Moreau. Mas, em minha leitura, o brilhantismo da obra se encontra no modo como Wells demonstra que determinados acontecimentos em nossas vidas jamais nos permitirão voltar a ser o que já fomos.
Ao final do livro, depois de escapar da ilha, Predick se torna um homem de letras recluso, incapaz de lidar tranquilamente com a sociedade, pois ele viu de frente tudo o que a humanidade é – apenas um bando de animais. Quando isso se torna claro, não há volta.
Com essa conclusão, a relação que a obra cria a temática da vivissecção de torna mais complexa. Ao se deparar com a animalidade que cada ser humano possui dentro de si, Predick enxerga que abrir um animal para quaisquer que sejam os propósitos tornou-se uma atitude contra a própria noção de humanidade. É como se cada criatura que é vivissecionada pelo Dr. Moreau fosse um ser humano.
Não é possível passar indiferente pela leitura desse livro. A Ilha do Dr. Moreau traz aos nossos olhos que o mais profundo horror se encontra de cada ser humano. E lá esse horror aguarda, pacientemente, uma oportunidade de se manifestar. Com críticas filosóficas apuradas, uma linguagem acessível e a capacidade de ainda ressoar seus incisivos apontamentos, que vão desde vivissecção até o modo como nos relacionamos socialmente, fazem dele um livro necessário.
Ficha técnica:
H. G. Wells – A Ilha do Dr. Moreau – 1896
Tradução: Braulio Tavares
Lançamento no Brasil: 2012
Editora Alfaguara Brasil
site: https://101horrormovies.com