Ana 30/04/2020
Aviso de antemão que esse livro é de compreensão difícil e exige muito do esforço do leitor. A linguagem é extremamente formal, técnica e o conteúdo é embasado em pensadores como Nietzsche, Hegel, Bataille, Baudrillard e alguns outros. Não é um livro para quem está em cima do muro, e muito menos para iniciantes. A escrita faz o cérebro se contorcer como um pano de chão.
Nesta obra, Byung-Chul Han traz à tona o olhar ao outro.
O outro, segundo Han, é um atopo, ou seja, uma criatura sem lugar que se torna alvo da nossa mania de comparação entre tudo e todos. Para ele, a "negatividade do outro atópico" é retraída, anulada frente ao consumismo massivo que temos hoje. Com isso, entende-se que nós consumimos o outro indivíduo como se este fosse um alimento para o nosso narcisismo. Para o autor, o problema em fazer isso é que paramos de enxergar o outro e toda alteridade, todo o conteúdo que ele carrega. As identificações, o famoso "match" entre as pessoas para de acontecer, e isso torna as relações cada vez mais superficiais, visto que, só enxergamos no outro aquilo que temos em si. Logo, relacionamentos da modernidade líquida não fazem mais tanto sentido.
É interessante comentar, também, que Byung-Chul vê a depressão como uma crise narcísica, pois, o indivíduo está tão mergulhado em si, nos próprios problemas e na própria falta de controle sobre a vida, que vira uma espécie de depressivo-narcisista. Assim fica esgotado, cansado de si mesmo, e essa mesma ausência de amor próprio faz com que as outras pessoas não queiram dar abrigo a esse enfermo. Nisso, quando se ama alguém nesse estado, o Eros se sobrepõe e vence a depressão, justamente porque "o Eros arranca o sujeito de si mesmo e o direciona para o outro".
Noutro ponto, o autor comenta acerca da depressão do sucesso que, voltada para a produtividade, força o sujeito a se colocar no ponto mais intenso do próprio desempenho. É assim que surge o pensamento envolta da exploração e da autoexploração. Han, aqui, é super inovador ao reparar que a autoexploração é a nova forma de exploração do século XXI. Na Era dos Coachs, a motivação é o combustível que alimenta o movimento do mundo e, enfim, a globalização. Neste sentido, ele cita Foucault e o pensamento neoliberal que transforma o sujeito num "empreendedor da liberdade" dentro do sistema de Estado mínimo. Isso justifica o que leva os novos empreendedores a trabalharem 16h/dia, sem dó de se autoexplorar. Porque o indivíduo sente o gosto da falsa liberdade: faz o próprio horário, trabalha quando quer e aonde quer. Só não consegue perceber com clareza que não consegue resistir a tamanha autocoerção, o que, ao fim, é pior que se fosse explorado pelo outro. Não há nenhuma forma de resistência com essa pressão que vem de dentro.
Dessa forma, Han culpa o Capitalismo por tais acontecimentos, pois este age como um agente inculpador. Alguém em que não se pode colocar a culpa e que não pode livrar o outro da sua própria culpa. Toda essa agonia do Eros vem com apenas um objetivo: aumentar o consumismo. Por isso Byung fala, ainda, do consumo dos sentimentos, emoções, corpos, fazendo alusão às artes e à pornografia - que substitui o Eros por sexualidade.
Em suma, o livro trata do Eros - Deus da paixão, amor e erotismo na mitologia grega - em relacionamentos atuais sob a ótica do consumismo, que oriunda inicialmente do capitalismo e caminha através do neoliberalismo. Entende-se que o enxame de informações tira a nossa atenção ao que realmente é necessário: o ato de amar o outro. É neste ponto que o nome do livro "A Agonia do Eros" faz morada. É um ótimo livro. A leitura é essencial.
Abaixo, os grifos que achei interessante destacar:
1. Sócrates enquanto amante, chama-a de atopos. O outro que eu desejo (begehre) e me fascina é sem-lugar. Ele se retrai à linguagem do igual: “Enquanto atopos, o outro abala a linguagem: não se pode falar dele, sobre ele; todo e qualquer atributo é falso, doloroso, insensível, constrangedor [...]". (p. 6)
2. A cultura atual da comparação constante não admite a negatividade do atopos. Estamos constantemente comparando tudo com tudo, e com isso nivelamos tudo ao igual, porque perdemos de vista justamente a experiência da atopia do outro. (p. 6)
3. A negatividade do outro atópico se retrai frente ao consumismo. (p. 6)
4. O narcisismo não é um amor próprio. O sujeito do amor próprio estabelece uma delimitação negativa frente ao outro em benefício de si mesmo [...] Ele não consegue perceber o outro em sua alteridade e reconhecer essa alteridade. Ele só encontra significação ali onde consegue reconhecer de algum modo a si mesmo. (p. 7)
5. A depressão é uma enfermidade narcísica. O que leva à depressão é uma relação consigo mesmo exageradamente sobrecarregada e pautada num controle exagerado e doentio. (p. 7)
6. O sujeito depressivo-narcisista está esgotado e fatigado de si mesmo. Não tem mundo e é abandonado pelo outro. Eros e depressão se contrapõem mutuamente. O eros arranca o sujeito de si mesmo e direciona-o para o outro. A depressão, ao contrário, mergulha em si mesma. (p. 7)
7. O sujeito de hoje, voltado narcisicamente ao desempenho, está à busca de sucesso. Sucesso e bons resultados trazem consigo uma confirmação de um pelo outro. Ali, o outro, que é privado de sua alteridade, degrada-se em espelho do um, que confirma a esse em seu ego. Essa lógica de reconhecimento enreda o sujeito narcisista do desempenho de forma ainda mais profunda em seu ego. Com isso, vai se criando uma depressão do sucesso. (p. 7)
8. O eros, ao contrário, possibilita uma experiência do outro em sua alteridade, que o resgata de seu inferno narcisista. Ele dá curso a uma denegação espontânea do si mesmo, um esvaziamento voluntário do si mesmo. (p. 7)
9. O eros vence a depressão. (p. 8)
10. A depressão se apresenta como impossibilidade do amor. Ou o amor impossível leva à depressão. (p. 8)
11. A partir de um determinado ponto da produtividade, o dever se choca rapidamente com seus limites. É substituído pelo verbo poder para a elevação da produtividade. (p. 12)
12. O apelo à motivação, à iniciativa e ao projeto é muito mais efetivo para a exploração do que o chicote ou as ordens. (p. 12)
13. A autoexploração é muito mais eficiente do que a exploração alheia, pois caminha de mãos dadas com o sentimento de liberdade. É possível, assim, haver exploração, mesmo sem dominação. (p. 12)
14. Foucault refere-se ao neoliberalismo afirmativamente. De forma acrítica, ele admite que o regime neoliberal, enquanto “sistema do estado mínimo”, possibilita a liberdade do cidadão enquanto “empreendedor da liberdade”[6]. (p. 12)
15. É bem verdade que a Ética do si-mesmo de Foucault se opõe ao poder político repressivo, contra a exploração alheia, mas torna-se cego para ver aquela violência da liberdade que está na base da autoexploração. (p. 13)
16. O tu podes exerce inclusive mais coerção do que o tu deves. (p. 13)
17. A autocoerção é muito mais fatal do que a coerção alheia, pois não é possível haver nenhuma resistência contra ela. Por trás da aparente liberdade do indivíduo singular, o regime neoliberal escode uma estrutura coercitiva; a partir daí o indivíduo passa a não mais compreender a si mesmo como sujeito submisso (subject to) mas como projeto lançado. É nisso que está sua astúcia. Quem fracassa, além do mais, acaba sendo culpado por seu fracasso. Não há ninguém que possa ser responsabilizado por seu fracasso. Tampouco existe qualquer possibilidade de desculpas ou de expiação. Com isso não surgem apenas as crises de culpa mas também as crises de gratificação. (p. 13)
18. O capitalismo não é uma religião, pois cada religião opera com culpa e desculpa. O capitalismo só é inculpador. Não dispõe qualquer possibilidade de expiação, que pudesse livrar os culpados de sua culpa. (p. 13)
19. A depressão representa um fracasso sem salvação e insanável no poder, isto é, uma insolvência psíquica. Insolvência significa, literalmente, a impossibilidade de liquidar a dívida e a culpa (solvere). (p. 13)
20. Se fosse possível possuir, apreender e reconhecer o outro, o outro não seria o outro. Possuir, reconhecer e apreender são sinônimos de poder”. (p. 14)
21. O corpo, com seu valor expositivo equipara-se a uma mercadoria. O outro é sexualizado como objeto de excitação. Não se pode amar o outro, a quem se privou de sua alteridade; só se poderá consumi-lo. (p. 14)
22. Hoje está se perdendo cada vez mais o decoro, a respeitabilidade, a distância, isto é, a capacidade de experimentar o outro em sua alteridade. (p. 14)
23. A proximidade é uma negatividade no sentido de que nela está inscrita uma distância. (p. 15)
24. Hoje em dia, o amor é positivado numa fórmula de fruição. Ele precisa gerar sentimentos agradáveis. Ele não é uma ação, uma narração, nem sequer é mais um drama; antes, não passa de emoção ou excitação inconsequente. (p. 15)
25. A sociedade do desempenho, dominada pelo poder, onde tudo é possível, onde tudo é iniciativa e projeto, não tem acesso ao amor enquanto vulneração e paixão. (p. 15)
26. O princípio do desempenho não se coaduna com a negatividade do excesso e o exagero. Assim, dentre as “convenções” a que se submete o sujeito da submissão, sub-estão: praticar muito esporte, alimentos sadios, dormir suficientemente. É proibido inclusive comer entre as refeições alguma outra coisa que não sejam frutas. O sub precisa inclusive deixar de lado o consumo exagerado de álcool e não pode fumar nem consumir drogas. A própria sexualidade precisa submeter-se a um mandamento da saúde. Fica proibida qualquer forma de negatividade. Fazem parte igualmente da lista das proibições o uso de excrementos. Elimina-se também a negatividade da sujeira simbólica ou real. Assim, o protagonista se comprometa a “ser por todos os tempos limpinho, depilado e lisinho”. (p. 15)
27. Nesse mundo da positividade só são admitidas coisas que são consumidas. A própria dor precisa ser consumível. (p. 16)
28. A memória não é um mero órgão de mera recomposição, com o qual presentifica-se o que já passou. Na memória, o passado se modifica constantemente. É um processo progressivo, vivo, narrativo. (p. 16)
29. A alteridade não é uma diferença consumível. O capitalismo vai eliminando por toda parte a alteridade a fim de submeter tudo ao consumo. (p. 17)
30. O eros é uma relação assimétrica com o outro. Assim, ele interrompe a relação de troca. (p. 17)
31. Segundo Vicino, o amor é a “pior das epidemias”. Ele é uma “transformação”. Ele “desapropria as pessoas de sua própria natureza e as transfere para uma natureza estranha”[20]. Essa transformação e vulneração perfaz sua negatividade. (p. 19)
32. Em seu estudo Konsum der Romantik [Consumo do romantismo], Eva Illouz constata que na atualidade o amor se “feminilizou”. Os adjetivos do tipo “gentil”, “íntimo”, “calmo”, “confortável”, “doce” ou “suave”, com os quais se costumam descrever cenas de amor romântico, são plenamente “femininos”. (p. 20)
33. Onde se santifica o mero viver, a teologia dá lugar à terapia. Ou então a terapia torna-se teológica. (p. 21)
34. O sujeito da autoexploração não é livre do mesmo modo que o sujeito da exploração alheia não é livre. (p. 21)
35. O capitalismo absolutiza o mero viver. O bem viver não é seu telos. Sua gana por acumulação e crescimento se volta contra a morte, que se lhe afigura como perda absoluta. (p. 21)
36. Para Aristóteles, a pura aquisição de capital é perniciosa porque não é uma busca pelo bem viver, mas apenas uma busca do mero viver: “Por isso, muitas pessoas imaginam que esta seria a tarefa da economia ou administração da casa, e defendem reiteradamente a ideia de que se deve acumular bens monetários ou multiplicá-los infinitamente. A razão para pensarem assim é o esforço laborioso por viver, mas não para bem viver”. (p. 21)
37. O sujeito narcisista-depressivo não é capaz de tirar conclusão [...] Não é por acaso que a indecisibilidade, inconclusividade, a incapacidade para a decisão pertence essencialmente aos sintomas da depressão. (p. 23)
38. Numa sociedade na qual cada um é o empresário de si mesmo vigora uma economia do sobreviver. (p. 24)
39. O neoliberalismo, com seus impulsos do eu e de desempenho desenfreados, é uma ordem social da qual o eros desapareceu totalmente. (p. 24)
40. O que simplesmente sobrevive se parece com um morto-vivo, que é por demais morto para viver e que é por demais vivo para poder morrer. (p. 25)
41. A pornografia tira sua força de atração da “antecipação do sexo morto na sexualidade viva”. (p. 27)
42. O obsceno na pornografia não reside no excesso de sexo, mas no fato de não ter sexo. (p. 27)
43. A musealização e exposição das coisas aniquila precisamente seu valor cultural em favor do valor expositivo. (p. 28)
44. O capitalismo acentua a pornagrifização da sociedade, expondo e exibindo tudo como mercadoria. Ele não conhece nenhum outro uso da sexualidade. Profana o eros em pornografia. (p. 29)
45. ”. A falta de informações levaria a “supervalorizar a alguém”, “atribuir-lhe uma mais-valia” ou a “idealizá-lo”. (p. 31)
46. Responsável pela crescente desilusão na sociedade de hoje não é tanto o aumento da fantasia, mas, supondo haver esse fenômeno, a alta expectativa. (p. 33)
47. Sem a negatividade dos umbrais, sem a experiência do umbral, a fantasia fenece. (p. 35)
48. A crise atual da arte e também da literatura pode ser reduzida à crise da fantasia, ao desaparecimento do outro, ou seja, à agonia do eros. (p. 35)
49. A alma impulsionada por eros produz coisas belas e sobretudo ações belas, que possuem um valor universal. Essa é a doutrina platônica de eros. (p. 37)
50. O neoliberalismo aciona uma despolitização geral da sociedade onde ele, não por último, substitui o eros por sexualidade e pornografia. (p. 37)
51. O pensamento sem eros é meramente repetitivo e aditivo. E o amor, sem eros, sem seu impulso espiritual, degenera em “mera sensorialidade”. Sensorialidade e trabalho pertencem à mesma ordem. Eles não têm espírito nem cupidez. (p. 41)
52. Em virtude da crescente massa de informações e dados, hoje as teorias são muito mais necessárias do que antigamente. Elas impedem que as coisas se misturem e proliferem. Eles reduzem a entropia. (p. 43)
53. A massa de informações de hoje[...] atua de modo deformativo. (p. 43)
54. O pensamento necessita de silêncio. É uma expedição para o silêncio. (p. 43)
55. Em Platão, eros é chamado de philosophos, amigo da verdade. O filósofo é um amigo, um amante. Esse amante não é, porém, uma pessoa exterior, não é uma circunstância empírica, mas “uma presença íntima no pensamento, uma condição de possibilidade do próprio pensar, uma categoria viva, uma vivência transcendental”. (p. 44)