Vitor Hugo 11/01/2024
A RAZÃO DEVE VENCER
"Nós", do russo Ievguêni Ivánovitch Zamiátin, foi publicado pela primeira vez em 1924, nos Estados Unidos, tendo em vista a desaprovação oficial da obra na Rússia/URSS.
Trata-se de uma das primeiras obras sobre um futuro distópico, sendo impossível não associar a leitura ao conteúdo dos livros Admirável Mundo Novo (Aldous Huxley, 1932) e 1984 (George Orwell, 1949).
Em "Nós", acompanhamos o relato do narrador e protagonista D-503, o qual se propõe justamente a escrever uma espécie de diário destinado, ao cabo, a possíveis civilizações extraterrenas, na medida em que o texto acompanharia a "Integral", uma peculiar nave espacial a ter seu primeiro voo em breve, valendo destacar que D-503 é o principal engenheiro/construtor/matemático encarregado da dita nave.
Assim, como se fossemos as civilizações a serem contatadas, tomamos conhecimento da rotina de D-503 e dos demais cidadãos do chamado "Estado Único", onde toda uma vida meticulosa e mecanizada se desenrola.
Há, portanto, uma faceta do livro mais ao modo Huxley, centrada em novos conceitos científicos, os quais determinam uma vida absurdamente racional, na qual os sentimentos humanos, tido como primitivos, não devem ter espaço.
Por outro lado, em um viés mais político, como ocorre em Orwell, somos apresentados a um Estado totalitário e centralizador, guiado pelo "Benfeitor" e por uma espécie de polícia política (composta pelos "Guardiões"). Há um controle total da vida das pessoas, que residem em prédios totalmente transparentes, de vidro, e que seguem uma "Tábua de Horas", a qual determina os horários exatos para absolutamente tudo, incluindo o sexo, que é encarado como apenas mais um necessário ato fisiológico.
Ocorre que o entusiamos quase infantil do protagonista com a vida estritamente racional começa a ruir quando ele conhece I-330, uma mulher misteriosa, que mostra a D-509 um lado, digamos, mais "humano" da existência, emotivo e imperfeito, com consumo dos banidos álcool e tabaco e com sexo independente de horários e dos famigerados talões rosas. A partir daí, completamente "enfeitiçado" por I-330, D-509 passará por uma divisão interna, entre o cidadão exemplar do Estado Único, e o potencial revolucionário a quem I-330 pretende cooptar, até porque ele, como construtor da "Integral", tinha muita importância para o grupo revolucionário.
Em um primeiro momento, parece que o livro, por ser da pena de um russo, poderia ser uma crítica contundente ao estado soviético e à ditadura de Stalin. Ocorre que a obra foi escrita em 1920 (ou 1923, não fica claro da presente edição), época em que a URSS estava apenas se formando, Lenin ainda era vivo e o camarada Stalin não tinha tanta importância no contexto bolchevique.
Nesse sentido, é bom atentar que o autor mais de uma vez cita Frederick Taylor (pai do taylorismo ou administração científica), de modo que o livro pode ser lido como uma crítica à civilização industrial dos grandes países capitalistas (daí que a obra se aproximaria, do seu modo, a uma crítica como aquela exposta por Chaplin, em Tempos Modernos, filme de 1936).
Seja como for, a obra contempla uma grande discussão filosófica que abarca liberdade x felicidade, razão x emoção, indivíduo x sociedade.
Em suma, o livro nos apresenta uma pioneira descrição da "rebelião do espírito humano primitivo contra um mundo indolor, mecanizado e racionalizado", como escreveu Orwell em 1946, resenhando a obra de Zamiátin.
Apesar de alguns problemas no desenvolvimento da trama, de certa irritação que a conduta do protagonista nos causa, a obra, pelo seu pioneirismo e influência, merece ser conhecida e apreciada.