spoiler visualizarBarrera 19/07/2021
capitulo xvi
"Eis aí uma terra", continuou Burlap, "e uma época em
que a pobreza era um ideal admissível, praticável. A terra provia a todas as
necessidades dos que viviam dela, havia pouca especialização profissional;
cada camponês era, numa larga medida, seu próprio manufator, do mesmo
modo que era o seu próprio açougueiro, padeiro, verdureiro e vinhateiro.
Uma sociedade na qual o dinheiro era ainda relativamente sem importância.
A maioria o dispensava quase por completo. Negociava diretamente com as
coisas — os objetos domésticos de seu próprio fabrico e os tenros frutos da
terra —, e não tinha assim nenhuma necessidade dos metais preciosos que
compram as coisas. O ideal de pobreza de São Francisco era então praticável,
porque ele propunha à admiração geral um modo de vida que não diferia
enormemente do modo de vida efetivo dos seus mais humildes
contemporâneos. Ele convidava os membros ociosos da sociedade e aqueles
que tinham uma especialização profissional — os que viviam principalmente
em função do dinheiro — a viver como os seus inferiores estavam vivendo,
em função das coisas. Como é diferente a situação de hoje!" Burlap caiu
uma vez mais no verso branco, levado desta vez pela indignação e não pela
ternura lírica. "Somos todos especialistas que vivemos em função somente do
dinheiro e não das coisas reais, e habitamos abstrações remotas e não o
mundo verdadeiro que produz e que fabrica." Garatujou alguma coisa a
respeito das "grandes máquinas que, tendo sido escravas do homem, são
agora suas tiranas", a respeito da estandardização, da vida industrial e
comercial e de seu efeito esterilizante sobre a alma humana (e para este
último ponto Burlap pediu emprestadas algumas das frases favoritas de
Rampion).
O dinheiro, concluiu Burlap, era a raiz de todo o mal; a fatal
necessidade, sob a qual o homem agora trabalha, de viver em função do
dinheiro e não das coisas reais. "Aos olhos modernos os ideais de São
Francisco parecem fantásticos, supinamente insanos. A Senhora Pobreza foi
rebaixada pelas circunstâncias modernas até a semelhança duma jornaleira
de sapatos furados que usa avental de estopa... Nenhum homem sensato
sonharia com segui-la. Idealizar uma Dulcinéia tão repulsiva seria mostrar-se
mais louco do que o próprio Dom Quixote. Dentro da nossa sociedade
moderna o ideal franciscano é impraticável. Tomamos a pobreza detestável.
Mas isto não significa que possamos simplesmente desdenhar São Francisco
como se ele fosse um visionário de sonhos loucos. Não. Pelo contrário, a
insânia é nossa e não dele. Ele é o médico no manicômio. Para os lunáticos o
médico parece ser o único louco. Quando recobrarmos a razão, haveremos
de compreender que ele era o único homem são. Nas condições atuais o
ideal franciscano é inexeqüível. A moral disso é que as condições devem ser
alteradas, radicalmente. Nosso alvo deve ser criar uma nova sociedade na
qual a Senhora Pobreza seja não a sórdida jornaleira, mas sim uma forma
esplêndida de luz, de graça e de beleza. Oh, Pobreza, Pobreza, linda Senhora
Pobreza..."
capitulo 22
Tudo será incrível, se pudermos tirar a
crosta de banalidade evidente que os nossos hábitos põem nas coisas. Todo
objeto, todo acontecimento contém em si uma infinidade de profundezas
dentro de outras profundezas. Nada se parece, por menos que seja, com sua
aparência — ou antes, tudo se parece ao mesmo tempo com vários milhões
de outras coisas.
capitulo 23
o progresso
mecânico significa mais especialização e padronização do trabalho, significa
divertimentos despersonalizados, feitos para todo mundo, significa uma
queda da iniciativa e das faculdades criadoras, significa mais
intelectualismo, e uma atrofia progressiva de todos os elementos vitais e
fundamentais da natureza humana, significa mais tédio e agitação, significa
enfim uma espécie de loucura individual que não pode ter outro resultado
senão a revolução social. Contemos ou não com elas, as revoluções e as
guerras são inevitáveis, se permitirmos que as coisas continuem o seu curso
atual.
— De sorte que o problema se resolverá por si mesmo...
— Mas somente por sua própria destruição. Quando a humanidade for
destruída, está claro que não haver mais problema. Mas isso me parece uma
triste solução... Acredito que possa existir outra, mesmo no quadro do sistema
atual. Uma solução provisória, enquanto o sistema fosse sendo modificado na
direção duma solução permanente. A raiz do mal está na psicologia
individual; de maneira que é por aí, pela psicologia individual, que seria
preciso começar. O primeiro passo seria fazer que as pessoas vivessem duma
maneira dupla, em dois compartimentos. Num dos compartimentos, como
trabalhadores industrializados, no outro, como seres humanos. Como idiotas,
como máquinas, durante oito horas dentro das 24; e como verdadeiros seres humanos o resto do tempo.
— Elas já não fazem isso?
— Está claro que não. Os homens vivem como idiotas, como máquinas,
todo o tempo, tanto nas horas de trabalho como nas horas de folga. Como
idiotas e como máquinas, mas imaginando que vivem como seres humanos
civilizados, mesmo como deuses. O primeiro passo a dar é fazê-los
reconhecer que eles são idiotas e máquinas durante as horas de trabalho.
"Sendo a nossa civilização o que é", eis o que será preciso dizer-lhes, "vocês
devem passar oito horas das 24 como uma espécie de intermediário entre
um imbecil e uma máquina de coser. É muito desagradável, eu sei. É
humilhante, é repugnante. Mas aí está... Vocês têm de fazer isso; de outra
maneira, toda a estrutura do mundo se fará em pedaços e nós morreremos
de fome. Eis por que é preciso que vocês façam esse trabalho bestamente e
mecânicamente; e que passem as horas de lazer como homens ou como
mulheres verdadeiros e completos. Não misturem as duas vidas;
mantenham os compartimentos bem estanques entre elas. O que importa
acima de tudo é a vida autênticamente humana das horas de folga. O resto
não passa de uma necessidade sórdida que é preciso satisfazer. E não
esqueçam nunca que ela é efetivamente sórdida e, a não ser por permitir
que vocês se alimentem e conservem intata a sociedade, absolutamente sem
importância, sem a menor relação com a verdadeira vida humana. Não se
deixem enganar pelos patifes cheios de unção que falam da santidade do
trabalho e do serviço cristão que os homens de negócios prestam aos seus
semelhantes. Tudo isso são mentiras. O trabalho de vocês não passa duma
tarefa repugnante e desagradável, mas que infelizmente é necessária por
causa da loucura de nossos antepassados. Eles acumularam uma montanha
de lixo, e é preciso que vocês fiquem a trabalhar dia e noite com suas pás
procurando remover o monturo, de medo que o fedor dele os envenene e
mate; é preciso que vocês trabalhem para respirar, maldizendo a memória
daqueles insensatos que lhes deixaram todo esse trabalho ignóbil por fazer.
Mas não procurem entregar-se-lhe de coração, fingindo que esse sujo
trabalho mecânico é uma necessidade nobre. Não é verdade; e o único
resultado que vocês obterão dizendo isso e crendo nisso será abaixar a nossa
humanidade ao nível dessa necessidade infecta. Se vocês acreditam nos negócios, como no serviço e na santidade
do trabalho, vocês se transformarão
simplesmente em idiotas mecanizados durante 24 horas, das 24 que tem um
dia. Reconheçam que é um trabalho infecto, tapem o nariz, dediquem-se a
ele durante oito horas e depois concentrem-se em si mesmos para ser, nas
horas de folga, entes humanos verdadeiros. Seres humanos verdadeiros e
completos. Não leitores de jornais, nem amadores de jazz, nem maníacos da
radiofonia. Os industriais que fornecem às massas divertimentos
padronizados e fabricados em série fazem o possível para torná-los, nas horas
de lazer, os mesmo imbecis mecânicos que vocês são durante as horas de
trabalho. Mas não permitam isso. É preciso fazerem o esforço necessário para
serem humanos." Aqui está o que se deve dizer às gentes; eis a lição que
devemos ensinar aos moços. É necessário convencer toda a gente de que
toda essa magnífica civilização industrial não passa dum mau cheiro, e de
que a vida verdadeira, a que significa alguma coisa, não pode ser vivida
senão fora dela. Será preciso muito, muito tempo para que uma vida
decente e o cheiro industrial se possam conciliar. Talvez sejam mesmo
inconciliáveis. É o que ainda está para se ver... Seja como for, por ora é
necessário atacar as imundícias, suportar o cheiro estoicamente, e, nos
intervalos, tratar de levar uma vida verdadeiramente humana.
capitulo xxix
— Mil homens não têm responsabilidade. Eis por que a organização é uma coisa tão
reconfortante. O membro de um partido político se sente tão seguro como o
freqüentador duma igreja. Seu partido pode decretar a guerra civil, o saque,
o massacre; ele faz o que lhe dizem, prazenteiramente, porque sua
responsabilidade não está comprometida. É a do chefe que está. E o chefe é
o homem raro, como Webley. O homem que tem coragem.