Lucas 29/06/2019Grandes ideias em execuçãoContraponto foi o primeiro já em algum tempo que me fez sentir a necessidade de expressar meus sentimento, um tanto ambíguos, quanto a ele. Não se trata de um livro grandioso na experiência em si mesma, mas, ao mesmo tempo, existe algo de singular no seu desenvolvimento e no papel dos seus personagens.
Provavelmente passarei pelos mesmo problemas de alguns aqui em ter que escrever quase um livro inteiro só para analisar a obrar e pontuar tudo aquilo que senti ao longo da leitura.
Primeiramente, os personagens. Logo no começo do livro somos apresentados à vida particular de dois personagens, Walter e Marjorie, em que o sentimentos nutridos por cada um são inversos e unilaterais. Enquanto, para um, trata-se de perceber um objeto de amor e devoção pura, para o outro trata-se de perceber um ser abjeto e razão de intratabilidade doméstico crônica, afastando-o da mesma de forma irrevogável. Esse começo, para mim, dá o tom do livro, no geral.
Nos capítulos seguintes, somos apresentados a mais e mais personagens em que as relações são permeadas dos mesmos pontos-contrapontos, e, complementado o início da construção dos mesmos, vemos ser descrita a execução de um concerto onde são expĺicitadas as ações individuais dos instrumentos e seus papeis na composição final operada no momento. Não à toa somos apresentados aos personagens na concomitância desse evento: Contraponto é, em si, a execução de elementos individuais em consonâncias e dissonâncias com outros elementos individuais. Assim, parece natural que o início e o fim da obra sejam apresentados com a execução, cada um, de um concerto.
O que muito me incomodou no início partia de uma consequência disso. Os personagens são dotados de uma artificialidade e cinismo que basicamente os torna inumanos e demasiadamente estranhos à minha visão. Nenhum personagem ali me foi capaz de causar simpatia, seja por seu completo ascetismo irônico ou por ser excêntrico e um tanto ridículo em suas ideias ou ações. Na realidade, a psyché de todos os personagens (e com certeza não faz medo generalizar) é um tanto unidimensional em seus propósitos. Lucy Tantamount não existe se não como um estereótipo de femme fatale com o propósito único de viver a conquistar e destruir os homens com os quais se envolve; Walter Bidlake mais parece uma cópia mal-feita de John Bidlake tanto na vida profissional quanto amorosa e se torna um retrato trágico tanto quanto cômico em si mesmo; Marjorie é basicamente a figura de um mártir que, mais parece, existe para relembrar a tentativa frustrada de Walter de ser um don Juan como seu pai. Não é preciso dizer que a falha é miserável, e a reprodução desse padrão pelo personagem só o torna mais ridículo ao observador externo, como muitas vezes é mencionado.
Foi preciso ter paciência para não desistir do livro. O cansaço que os personagens causam pelo seu cinismo inumano é, como diz a palavra que talvez mais apareça na tradução, extremamente cacete. (Aqui vale dizer que a tradução é realmente maravilhosa, não sei até onde vai o talento literário do Huxley, mas com certeza a tradução do Érico Veríssimo favorece muito a leitura da obra). O fato de não se nutrir empatia por nenhum personagem me fez querer ou com que todos morressem, e seria realmente milagroso um efeito apocalíptico para aquelas pessoas em algum momento, ou que surgisse algum personagem que, à força de expressão ou literalmente, desse um tapa na cara de todos e os mandassem acordar para o mundo real.
Mark Rampion talvez seja o que mais se aproxima desse objetivo, e, dentro da obra, talvez seja o que mais se aproxima de algum traço de humanidade palpável e menos unidimensional que os demais. Tanto ele como Philip Quarles (que talvez seja nada além do que o eu-lírico do autor na obra) são, possivelmente, os melhores pontos de conjunção de análise dos demais personagens. Os momentos de fala de ambos sempre suscita a reflexão dos papeis dos demais nos acontecimentos. No entanto, não deixam de ser unidimensionais como o restante, por mais da qualidade que tenham. Quarles é um asceta científico-literário, enquanto Rampion é um um asceta crítico da desumanização do século.
Não estou reclamando da obra, na verdade. Por um dos capítulos (não direi qual, para não estragar a experiência) o autor explicita seu objetivo e usa a voz do personagem para fazer sua aparição. A unidimensionalidade é um objetivo: Contraponto não é apenas um novela, ou realmente não é uma novela de alguma forma. É antes um romance de ideias, e isso reduz, com certeza, a psyché dos personagens a essa unidimensionalidade para apresentar seus pontos ao longo da obra.
A comutação entre os personagens em diveresos momentos se torna mote para discutir tudo o quanto possa ser discutido enquanto criação humana: religião, política, ciência, literatura e filosofia. Os personagens são meros executores de discursos e ideia em que são fundamentados os pontos e contrapontos. E, não somente aí existem essas relações: entre um capítulo e outro as ações dos personagens se encontram em ponto e contraponto. Toda a obra é executada com um objetivo, e todo o objetivo é bem executado.
Contraponto, assim, é uma grande obra. Mas, para mim, foi necessário um pouco de paciência para continuá-la e compreender seu objetivo. A discussão poderia ir muito além disso, mas não quero interferir na experiência dos demais em sua leitura. Acho que se trata de uma obra em que a leitura é a experiência do perceber o discurso dos personagens (ou do autor?). E, nesse momento, se seremos Elinor ou Philip a ouvir o discurso de Webley frente aos Ingleses Livre, numa relação de ponto e contraponto em nossas opiniões