Alexandre Kovacs / Mundo de K 09/12/2017
Haruki Murakami - Crônica do Pássaro de Corda
Editora Companhia das Letras (Selo Alfaguara) - 768 Páginas - Tradução direta do japonês por Eunice Suenaga - Lançamento no Brasil: 21/11/2017.
Sem dúvida um dos livros mais delirantes e criativos de Haruki Murakami, originalmente publicado em três volumes no Japão, de 1994 a 1995, foi traduzido para o inglês em 1997 e chega finalmente ao Brasil, depois de uma década de atraso, nesta edição traduzida diretamente do japonês por Eunice Suenaga. É recomendado para os fãs e também iniciantes no universo ficcional do autor que encontrarão nas quase oitocentas páginas, o estilo inconfundível que mais aproxima as culturas do ocidente e oriente com sua mistura de realismo mágico e literatura policial noir. Nesta obra, uma grata surpresa mesmo para os leitores já iniciados, muitas passagens de um excepcional romance histórico, alternando o foco da narrativa entre a cidade de Tóquio em 1984 e a região da Manchúria, ao final da Segunda Grande Guerra, quando o Japão é derrotado pelas forças da União Soviética, marcando o final da violenta ocupação da China. É claro que essas são localizações geográficas do mundo real e este, assim como todo bom romance de Haruki Murakami, também utiliza como cenário outras dimensões e mundos paralelos.
Uma série de estranhos acontecimentos tem início com o desaparecimento do gato de estimação do casal formado por Toru Okada e Kumiko Wataya, eles dividem um cotidiano simples e sem maiores aspirações, juntos há seis anos não tiveram filhos como tantos outros casais na sociedade moderna japonesa, a única diferença é que ele cuida da casa enquanto ela sai para trabalhar. Tudo isso está prestes a mudar quando Toru Okada que prepara o seu spaghetti, com música de fundo de Rossini, interpretado pela Orquestra Sinfônica de Londres, é perturbado por uma ligação telefônica de uma desconhecida que pede apenas dez minutos do seu tempo. À partir deste ponto, várias personagens, incluindo duas irmãs videntes e uma adolescente da vizinhança, irão ajudar o desnorteado protagonista de trinta anos a desvendar o mistério da casa dos enforcados e o fundo do poço abandonado, encontrar o gato e sua própria esposa, que também desaparece sem deixar vestígios.
"Tirei a roupa. Pois é... Não me pergunte por que, nem eu sei direito o motivo. Então... não me pergunte nada e deixe que eu conte até o fim... então tirei tudo o que cobria meu corpo, saí da cama e me ajoelhei no chão, bem onde estava a poça branca da luz da lua. O aquecedor do quarto estava desligado e provavelmente fazia frio, mas não senti nada. Parecia que havia algo especial na luz da lua que se insinuava pela janela, e esse algo me envolvia e me protegia completamente com uma espécie de película fina. Permaneci ali assim, totalmente nua, e depois comecei a expor várias partes do meu corpo, uma a uma, para essa luz. Como posso explicar... isso me pareceu a coisa mais natural a fazer. A luz da lua era lindíssima, de verdade, e eu precisava fazer isso. Expus cada parte do meu corpo à luz da lua: o pescoço, os ombros, os braços, os seios, o umbigo, as pernas, o quadril, e até aquele lugar, como se a luz lavasse tudo. (...) Continuei ajoelhada por muito tempo no mesmo lugar, sem me mexer. Sozinha e sem nenhuma roupa, eu era banhada pela luz da lua, que tingia meu corpo de uma cor curiosa. Minha sombra, longa, nítida e preta, se projetava no chão e ia até a parede. Mas não parecia ser a minha sombra, e sim a de outra mulher, com um corpo mais maduro e adulto, contornos mais arredondados, seios e mamilos bem maiores, tudo bem diferente do corpo de uma mulher virgem como eu." - Trecho da carta de May Kasahara para Toru Okada (Pág. 748)
"A Crônica do Pássaro de Corda", independente dos devaneios ficcionais de Murakami é uma fábula sobre a força do destino e a nossa capacidade de livre-arbítrio. Muitas vezes realizamos atos contra a nossa vontade para atender às demandas da sociedade, assim como "bonecos de corda postos em uma mesa". Os personagens tentam escapar de uma realidade implacável, muitas vezes precisam se transformar em outras pessoas para se libertar. Enquanto isso, o pássaro de corda, lentamente dá outra volta e coloca o mundo em movimento todos os dias. Um lindo romance que, apesar da extensão, se lê com muita velocidade, deixando aquela sensação de pena quando chegamos ao final.