Fabio Shiva 05/07/2021
Queria sorvete, mas encontrei feijão!
Existe uma anedota bem conhecida que define bem como foi a minha experiência com esse livro: abrir um pote de sorvete e descobrir que alguém usou para guardar feijão! Sou um fã inveterado de Agatha Christie, a ponto de ter lido duas ou três vezes boa parte de seus livros (só esse ano já li seis dela). Pois então, imaginem a minha alegria ao constatar que ainda não havia lido esse “O Mistério dos Sete Relógios”, por ter confundido com outra obra de Agatha de título similar, “Os Relógios”. Mergulhei na leitura, feliz da vida por esse natal antecipado, mas ó, tristeza! Por volta da página 30 descubro que não se trata de um livro de mistério e assassinato, cuja grande diversão é decifrar as pistas para descobrir a identidade do assassino, jogo intelectual no qual Agatha tornou-se imbatível e fez por merecer o título de “Rainha do Crime”. Mas sim uma de suas embaraçosas tentativas de escrever uma aventura de espionagem, que eu pessoalmente detesto! Por isso a sensação que tive foi a de encontrar feijão congelado onde eu esperava me deleitar com um bom napolitano!
Mas por que, afinal, detesto tanto as histórias de espionagem de Agatha Christie? O grande ganho que tive com essa leitura foi justamente buscar evidências para responder a essa pergunta. Mas somente a partir da página cento e tanto, pois até então ainda me esforcei por gostar da história, pelo que ela era. Mas não deu. Não cheguei a desgostar a ponto de interromper a leitura (isso só aconteceu em um dos livros de Agatha, “Passageiro Para Frankfurt”, que abandonei na página 60). Mas li corrido e desatento, sempre na hora de deitar, para ajudar o sono a vir.
Tantos “mas” em um único parágrafo não são à toa. De fato, encontro muitas objeções às histórias de espionagem de Agatha Christie. A primeira e a maior delas é justamente o fato de eu ser tão fã das histórias clássicas de “Whodunit” (“quem matou?”) escritas por Agatha. Considero essas histórias mais um jogo de dedução que propriamente literatura, e nesse caso determinadas fragilidades na trama não têm a menor importância, o que não é o caso quando se trata de um romance que tenha outros objetivos além de propor um enigma ao leitor. Por exemplo, a verossimilhança. Vários crimes cometidos nos livros de Agatha são absolutamente inverossímeis, e é praticamente impossível que algum dia pudessem ser cometidos na vida real. Isso em nada atrapalha a diversão do leitor-detetive, muito pelo contrário: quanto mais complicado e impraticável for o crime, maior a diversão (tanto que existe até um subgênero do romance policial, que se dedica exclusivamente a “mistérios do quarto fechado”, linha que tem em John Dickson Carr um de seu maiores expoentes).
Outro fator é a bidimensionalidade dos personagens. Ninguém espera profundidade de um personagem de romance policial clássico (diferentemente do que acontece nos mistérios de Georges Simenon ou de P. D. James, por exemplo). Os personagens são mais ou menos como peças em um tabuleiro: “Coronel Mostarda na biblioteca”. Se acontece algum envolvimento romântico entre personagens de uma trama de mistério clássico, isso está a serviço do jogo do detetive: pode (ou não) ser apenas um despiste para desviar a atenção do verdadeiro culpado.
Mas (e aí vai um grande “mas”) em uma história de “espionagem” de Agatha Christie o jogo da dedução sai do primeiro plano e torna-se um elemento secundário da trama. Assim, em minha opinião, ficam incomodamente evidentes as fragilidades que em nada me afetam nas histórias de detetive: a inverosimilhança, os personagens rasos, as historietas românticas. E sobretudo o senso aristocrático de humor. Por algum motivo, Agatha parece associar a espionagem a aventuras rocambolescas e divertidíssimas (ao menos para os envolvidos). Isso me incomoda porque considero a espionagem uma atividade sórdida, que traz à tona o pior da natureza humana e onde dificilmente “os fins justificam os meios”. Isso não significa que eu não goste de ler romances de espionagem, veja bem! Contudo, nessa categoria tenho como ídolos John Le Carré e Graham Greene (quem já leu esses autores deve entender meu desgosto com as ingênuas histórias de espionagem de Agatha).
Sem contar que, no Brasil de 2021, fica difícil simpatizar com as piadas da aristocracia britânica de quase um século atrás (o romance é de 1929), piadas sobre golfe, sobre a estupidez dos lacaios, sobre a chatice de suportar narrativas tediosas sobre as crianças refugiadas do pós-guerra...
“— Cultura de almanaque, não é?
— Existe algo mais horrível do que isso? — disse Mr. O’Rourke, acrescentando com ar santarrão: — Graças a Deus, tive boa educação e não entendo absolutamente nada de coisa alguma.”
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