Krishnamurti 05/01/2018
“AMORTALHA” NOVO LIVRO DE MATHEUS ARCARO
Indagações, perplexidades e desesperos humanos estão sempre a convocar e atualizar certos temas básicos. Amor e morte são dois eternos, com as suas variações, que se repetem de escritor para escritor, retomados, reabertos e redimensionados, segundo a visão-de-mundo de quem os versa. Qualquer escritor pode habilitar-se a deles lançar mão, sem pudor, porque mais importante que o tema a ser desenvolvido, será a maneira de exprimi-lo. Matheus Arcaro escreveu “Amortalha”, livro de contos em que reúne 21 textos de forte conotação filosófica.
É obra na qual filosofia & literatura se imbricam para retratar, à sua maneira, as vicissitudes humanas. Assim, no horizonte dos textos, nos deparamos com o mesmo homem atravessado pela incompletude, pelo desejo de ser, pelo medo elementar da morte, pela falta ou pela busca de sentido do existir, e pelo amor mola mestra da vida. Filosofia & literatura partilham deste mesmo para-si e buscam, cada uma por seu estilo próprio de significação, comunicar o drama da existência, detalhar o máximo possível a experiência do homem no mundo. Não se deduza disto que está o autor a confundir alhos com bugalhos. Grosso modo, a filosofia cria conceitos, engendra no pensamento, o pensar. Já a literatura cria outras línguas a partir da língua, ela é criação de sintaxe, limite assintático, força a língua até os limites do indizível. Todavia, ambas partilham do compromisso da nobreza, do elevado, em detrimento do hediondo e inferior. O autor bem sabe disso, mestrando que é em Filosofia Contemporânea pela Unicamp.
Amor e morte escrevemos acima, são temas de excelência e nesse caso específico, também os dominantes na obra de Arcaro. No conto “Pra onde a gente vai?” uma definição de existencialidade, quanto a aspectos de vida/morte. Uma menina acolhe um filhote de passarinho que certamente caíra do ninho, e pede socorro à mãe, com o intuito de salvá-lo: “A linguagem da vida (e da morte, que são diferentes apenas por uma questão de perspectiva) perpassa os três corpos: o grande, chancelado pelos anos, pelas conquistas e frustrações: o pequeno, em plena primeira defloração e o inanimado”.
Já em “Metade de mim”, assistimos o monólogo de uma mulher grávida dirigido ao filho que espera. Veja-se ai a densidade filosófica e o amor maternal entrelaçados: “Viver é o que restará a ti assim que eu te arremessar na linha temporal. Eu te condenarei à morte, eis um fato bruto. Talvez por não darem conta desse peso, uns tentem inflar o futuro; outros, maquiar o passado. Mas lembra-te que eu também te condenarei à vida. Te darei o presente. Não, não, tu és meu presente, só isso posso afirmar olhando pro teu quarto decorado de amarelo e pro berço que logo será preenchido com tua existência”.
Vislumbramos no autor uma atividade literária que força a linguagem a advir outra, força-a a flertar com o indizível – “as palavras... não dão conta das acontecências mais profundas” - . Ou seja, trata-se de uma inspiração recebida da atividade literária, dos processos de criação e da poética artística. Ou seja, reconhece na literatura um verdadeiro operador transcendental do e no, pensamento que o leva a pensar pelo encontro com o fora. E é assim que o lemos num perspectivismo cujos ângulos se lançam prazerosamente também a partir das relações da escrita filosófica com a escrita literária.
O autor inspira a si mesmo a partir do vivido, parte de suas lembranças íntimas, de seus sonhos/pesadelos e de suas observações para tomá-los como matéria pulsante da própria vida. Parte delas para ultrapassá-las, para aceder a um devir-outro, para atingir, em suma, percepções e afetos que nada devem ao sujeito que as sentiu ou experimentou outrora. Veja-se a cristalização de tal assertiva: “D. Nenê”, “Alemão”, “A flor” e “A graça de Benedito” são contos que possuem enredos, sentidos e desfechos adequados a suas realidades próprias e, entretanto, ao lermos “Metade de mim” sentimos em uma outra dimensão os fatos e personagens daqueles outros contos dentro de outra perspectiva. Assim, e acrescentando, vale salientar também distintas vertentes que o autor percorre. A do escritor engajado, que fazendo uso de signos, desmistifica o homem ao próprio homem, dissolvendo mitos e fetiches com banhos de ácidas críticas. Vide o conto “Foucault ficcionista”. Já em “Fora do ar”,- um flerte com o fantástico-, a metáfora vigorosa da dependência televisiva que nos assola, observe-se ainda o apurado senso social em contos como “Má educação”, “Réveillon” e o já citado “Metade de mim”, que embora possuam mensagens outras bem específicas, tocam em questões da grande baderna político-social que vivemos no Brasil.
E é assim, e de forma muito positiva que os textos de Matheus Arcaro, nos fazem sentir aquele “assombro que permite apalpar as intimidades do instante”. Finalmente, e com que felicidade constatamos que a arte se mostra ao filósofo como um instrumento privilegiado para levar a cabo a investigação do pensamento, a orientação e o sentido deste pensamento aliado a sentimentos. Com efeito, e bem feito!
05/01/2018
Livro: Amortalha – Contos de Matheus Arcaro, com Ilustrações de Ubirajara Júnior – Editora Patuá- São Paulo,SP, 2017, 120p.
ISBN 978-85-8297-459-9