Andreia Santana 01/02/2019
'Minha pátria é minha língua'
O português falado no Brasil, tão peculiar em comparação com o modo de falar europeu e dos demais países lusófonos, embora tenha muita mistura, não foi uma língua consolidada pacificamente. Ao menos essa é a conclusão da leitura de Muitas línguas, uma língua: A trajetória do português do Brasil, obra do escritor e filólogo Domício Proença Filho, ex-presidente da Academia Brasileira de Letras.
De forma didática e ao mesmo tempo com narrativa empolgante, o livro desvenda a epopeia da colonização a partir da consolidação da língua portuguesa nas mesclas do idioma trazido pelos lusos com as línguas faladas por indígenas e negros, com a contribuição - embora em menor escala, como ressalta o autor - das falas dos imigrantes estrangeiros que aportaram no Brasil entre os séculos XVI e XIX.
Uma língua mestiça que nasce na base da força, banhada no sangue de índios e africanos; moldada de forma impositiva pela doutrinação dos padres da Companhia de Jesus - foram os jesuítas que criaram uma sistematização e uma gramática para o Tupi -; imposta no fio da espada dos soldados de homens como Mem de Sá, o governador-geral que pacificou a recém-nascida capital da colônia e dizimou aldeias inteiras; que avançou território adentro no trote das montarias dos bandeirantes e tropeiros; que se suavizou a partir do desejo de uma literatura nacional que traduzisse as cores e as angústias de um povo complexo desde sua origem e que, no alvorecer do século XXI, se atualiza em gírias disseminadas nas redes sociais.
O livro, embora focado na história da língua, também pode ser lido como um ensaio sobre a identidade multifacetada do povo brasileiro, de uma forma que, ao mesmo tempo em que nos mostra os aspectos positivos da riqueza de culturas que formam o país, não deixa de ser crítico à forma violenta como essa mistura se deu.
Referências
Muitas línguas, uma língua.... é uma riqueza em termos de exemplos da evolução do português, pois traz diversos textos comparativos, desde a carta de Pero Vaz de Caminha até letras de cantigas africanas, lendas indígenas, poemas, trechos de romances, peças de teatro e notícias de jornais de distintas épocas. Também é uma boa referência para amantes de História, pois o autor traça paralelos entre a construção do nosso idioma e momentos marcantes como a destruição do Quilombo de Palmares, a chegada da família real portuguesa em 1808 e a construção de Brasília.
Voltado para estudantes de Letras e também para interessados em história, literatura, linguística e gramática, Muitas línguas, uma língua... revela curiosidades como o fato de existirem cidades brasileiras, ainda hoje, que possuem mais de um idioma oficial. Nos conta ainda que lá nas origens do nosso idioma, nos primeiros contatos entre os lusos e os índios, e entre lusos, índios e africanos, foram criadas algumas ‘línguas gerais’ que misturavam diversas variações do tupi-guarani com o português e com as línguas trazidas por bantos e iorubás escravizados. No Amazonas dos dias atuais ainda existem pessoas falantes de algumas dessas ‘línguas gerais’.
Para completar, o livro também traz uma valiosa bibliografia e está recheado de notas com explicações extras, para quem quiser se aprofundar nos estudos do tema. Alguns trechos, que utilizam o português arcaico, são de difícil leitura, mas nada que torne cansativa e enfadonha a apreciação da obra.
O autor é ainda bem cuidadoso ao apresentar os debates em torno da consolidação do idioma, sem tomar partido e mostrando todos os lados de polêmicas como a proposta de mudar o nome da variante de português falada no Brasil para ‘Língua Brasileira’; ou as idas e vindas da reforma ortográfica acordada pelos países lusófonos, desde as primeiras tentativas de aprovação nos anos 1990 até ela vigorar no país, a partir de 2009, com todas as etapas de adaptação que foram necessárias.
Interessante ainda é o panorama que Domício Proença Filho apresenta do processo de educação no Brasil. Desde as primeiras escolas fundadas pelos jesuítas até a regulamentação do ensino público e gratuito, o autor passeia por todas as discussões, leis e normas regulatórias que moldaram o ensino do português, em sua forma culta, nas unidades de ensino do país. Daí que para educadores, o livro também é valioso.
Embora possa ser lido de uma vez, como um romance sobre as aventuras e desventuras de um povo na consolidação de sua língua oficial e de sua identidade como nação, este é um livro que deve ser preservado para consultas frequentes, pois há em suas páginas um aprendizado que não se esgota em uma leitura.
Trechos do livro para dar um gostinho:
“Mem de Sá, desembargador, ‘sábio nas letras legais’, é nomeado governador-geral em 1557. Assume com missão pacificadora e sem mandato fixo: o tempo de seu governo é o tempo de sua vontade e se estende por 15 anos. Entre as instâncias comunitárias ao tempo de seu governo, ele promove a eliminação dos abusos, domina à força a rebeldia dos silvícolas. Em paralelo, dá seguimento à conversão pela mão dos jesuítas e à organização em aldeias por estes comandadas. No curso do seu mandato dizimam-se indígenas caçados em tribos e aldeados em missões. De 12 mil numa delas, para citar um exemplo, configura-se a rápida redução a apenas mil. Muitos índios são ceifados também por graves epidemias. Entre elas, a de varíola, de 1562 a 1563, que não atinge os lusitanos e elimina mais de 30 mil indivíduos, entre indígenas e negros. Novo surto mata um quarto da população de índios sobreviventes. Só nas terras da Bahia perecem 70 mil. É de imaginar o impacto do extermínio no contingente de usuários das línguas em que se comunicavam.”
(...)
“Em relação ao processo de formação, predomina, na primeira metade do século XIX, a tese de que o português brasileiro resultaria de uma evolução natural do português de Portugal. É a teoria evolucionista. Ocorreria com o idioma, portanto, o mesmo que ocorre com a evolução das espécies. Para os biologistas, as línguas nascem, crescem, desenvolvem-se, morrem. No processo evolutivo do português no Brasil, um fator de relevância seria um dado novo: a influência das línguas indígenas e africanas. O posicionamento termina por não se sustentar, diante de um entendimento posterior e consensual: quem faz a língua é a sociedade que dela se vale. A língua é um fato social. Sua configuração obedece à dinâmica do tempo. Decorre, como explicita Edith Pimentel Pinto, da sua utilização pelo falante, marcada de alterações de imediato imperceptíveis. Tais mudanças é que conduzem a variedades de natureza social e geográfica, vinculadas diretamente à faixa etária, ao grau de educação, à profissão, à classe social.”
(Muitas línguas, uma língua. Domício Proença Filho, Ed. José Olympio, págs 64 e 322)
*O título da resenha é um trecho da canção 'Língua', de Caetano Veloso
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