TS.Meirelles 11/05/2015
Oceânico
Lembro-me com clareza quando sondava iniciar a leitura de Guerra e Paz, e li em algum lugar que não lembro tão claramente assim a palavra "oceânico." O número de páginas pode tornar um livro extenso, mas não necessariamente grande. Em Guerra e Paz, Tolstoi cria uma obra abissal em todas as direções: em grandeza e profundidade, em uma análise sociológica e psicológica profunda e extensa.
Fruto, também, de profundos estudos históricos clássicos, é significativamente baseado na história não dos livros dos generais, mas nas histórias dos soldados e do povo, do sentimento russo e das percepções próprias nem sempre canônicas, do período das guerras napoleônicas (especificamente da campanha na Rússia). Liev não se furta o direto de julgar os fatos e, mostrando mesmo as visões contrárias, focaliza os fatos históricos a partir da sua ótica, como as vitórias nas campanhas militares, as motivações dos marechais e o caráter dos Comandantes Napoleão e Kutuzov. Como falarei depois, não se abstém do direto de, filosoficamente e, por quê não, teologicamente, debater sobre a razão do movimento militar que sacudiu e redesenhou a Europa.
Tolstoi esmiúça as diversas esferas sociais russas, dos mujiques, passando pelos comerciantes, funcionários públicos, militares e chegando até a nobreza e o Tsar Alexandre I, saltando livremente entre os pilares que os sustentam e os mobilizam. As estruturas de pensamento dos interlocutores são mostradas e trocadas, ora falando de um, ora de outro, de maneira maestral. A grandeza dos detalhes da obra pode ser evidenciado, por exemplo, quando relata o espanto de crianças russas ao verem "um negro."
Pela imensidão, tem-se a impressão que jamais acabaria, e que Tolstoi seria capaz de continuá-lo infinitamente, mantendo todas as qualidades literárias necessárias ao nosso desejo de continuidade.
Na obra, são incontáveis os personagens; porém, dois podem ser tomados sem arbitrariedade para principais: Pierre Bezukhov (mais que), Natasha Rostova e Andrei Bolkonski, embebidos de suas crises e contradições, da humanidade de todo homem, na alegria, no amor, no relacionamento interpessoal, na fé, no sentido da vida.
Finalmente, merece nota a pungência com que Tolstoi trata de assuntos que são para ele essenciais não para a literatura, mas para a humanidade. Ferrenho defensor de que a sua literatura deveria possuir uma finalidade, Leon fala abertamente de suas convicções morais e abre um pouco o pensamento da sua cosmovisão, apontando as possíveis causas do movimento das massas em todos os tempos, refletindo sobre o poder,sobre como se manifestam, sobre as estruturas de poder e suas consequencias. É interessante ler a obra tendo em mente não só o período histórico em que vivia, mas também o período interior, espiritual e intelectual desse autor que estava a meio caminho da total conversão ao cristianismo, seu radicalismo e o aparecimento do "tolstoismo". Guerra e Paz é merecedora do crédito de uma das maiores obras da história da literatura. E, ao lê-lo, chega-se a essa conclusão sem ter, necessariamente, lido todas as outras.