psraissafreire 17/01/2023
Um e-mail.
Oi, gente! A primeira resenha do ano é bem especial e um pouquinho diferente. Vou transcrever para vocês um e-mail que mandei para duas amigas minha (temos essa mania de mandar e-mails umas pras outras). Nele eu falei sobre "Guerra e Paz". Aqui está!
“Sem a consciência de si é inconcebível qualquer observação e qualquer aplicação da razão.”
Queridas Duda e Lau,
Faz quase meia hora que finalizei "Guerra e Paz". Ainda preciso ler os posfácios que estão inclusos na minha edição da Companhia das Letras, mas a leitura da obra em si foi concluída. Ainda me encontro sem palavras para expressar a magnanimidade, a grandiosidade que esta trama possui e da importância para o meu pensamento sócio-histórico. Ele me fez pensar em muitos aspectos, tanto internos quanto externos.
É por causa desse tipo de obra que eu fico fascinada e tão hipnotizada pela leitura. A maneira como um livro me desperta e me faz pensar no mundo em que vivemos e como vivemos... Só um livro é capaz de fazer isso, e só um clássico como "Guerra e Paz" consegue fazer isso de maneira tão maestral, tão impecável e inesquecível. Esta trama vai perdurar na minha mente por muito tempo, sério, e espero um dia ter contato novamente com personagens e uma escrita tão primorosos.
Pensar na forma como analisamos os momentos históricos e seus principais personagens, na atribuição gritante que damos a estas pessoas e o protagonismo que construímos em cima deles: foi isso que o Tolstói conseguiu atribuir na sua maior obra. A segunda parte do epílogo foi extremamente genial, TODAS as passagens são dignas de reflexões inesgotáveis.
Enfim, mesmo sabendo que há muita ficção ali, com aqueles personagens, aquelas "fofocas" que eu já contei para a Eduarda kakakakak... Ainda assim não dá para largar, não dá para NÃO imaginar todos os cenários, ouvir as músicas, sentir os olhares, os toques, os beijos, as falas. É tudo tão palpável, meninas! Ai, estou fascinada, completamente FASCINADA!
Olha, eu vou mandar aqui o último capítulo da obra, que está na segunda parte do epílogo. Peço que tenham paciência e leiam, é impossível não se arrepiar. Obrigada por lerem até aqui, amo-lhes muito!
"Desde que foi descoberta e provada a lei de Copérnico, a simples admissão de que não é o Sol que se move, e sim a Terra, aniquilou toda a cosmografia dos antigos. Talvez fosse possível, uma vez refutada a lei, conservar o antigo conceito do movimento dos corpos, porém, como ela não foi refutada, seria impossível, pelo visto, prosseguir o estudo dos mundos ptolomaicos. No entanto, mesmo após a descoberta da lei de Copérnico, os mundos ptolomaicos continuaram a ser estudados por muito tempo.
Desde que o primeiro homem disse e provou que a quantidade de nascimentos ou de crimes está subordinada a leis matemáticas, e que determinadas condições geográficas e político-econômicas determinam esta ou aquela forma de governo, e que determinadas relações da população com a terra produzem os movimentos dos povos — desde então, foram destruídas, a rigor, as bases sobre as quais se edificou a história.
Talvez fosse possível, uma vez refutadas as novas leis, conservar o conceito anterior de história, no entanto, como ele não foi refutado, pareceu impossível continuar a estudar os acontecimentos históricos como frutos da vontade livre das pessoas. Pois, se tal forma de governo se estabeleceu ou se tal movimento de um povo se executou devido a determinadas condições geográficas, etnográficas ou econômicas, a vontade das pessoas que representamos como as determinantes da forma de governo ou como os motores do movimento de um povo já não pode ser vista como uma causa.
E, no entanto, a história antiga continua a ser estudada em pé de igualdade com as leis da estatística, da geografia, da economia política, da filologia comparada e da geologia, frontalmente opostas aos seus postulados.
Na filosofia física, houve por muito tempo e de modo obstinado uma luta entre a visão antiga e a nova. A teologia pôs-se em guarda na defesa da visão antiga e acusou a nova de destruir a revelação. Mas, quando a verdade venceu, a
teologia edificou-se de forma igualmente firme sobre o solo novo.
Assim também, em nossa época, existe há muito tempo e de forma obstinada uma luta entre a visão antiga e a visão nova da história, e a teologia também se põe na defesa da visão antiga e acusa a nova de destruir a revelação.
Num caso e no outro, de ambas as partes, a luta desperta paixões e sufoca a verdade. De um lado, aparecem o medo e a compaixão por todas as construções erguidas pelos séculos; de outro lado, existe a luta da paixão de destruir.
Para as pessoas que lutaram contra a verdade suscitada pela filosofia física, parecia que, se reconhecessem aquela verdade, seria destruída a fé em Deus, na criação do firmamento, no milagre de Josué, filho de Naum. Para os defensores da lei de Copérnico e de Newton, para Voltaire, por exemplo, parecia que as leis da astronomia demoliam a religião e ele usou a lei da gravidade como uma arma contra a religião.
Da mesma forma parece ocorrer hoje em dia: basta reconhecer a lei da necessidade, e se destrói o conceito da alma, do bem e do mal e todas as instituições governamentais e eclesiásticas construídas com base nesses conceitos.
Da mesma forma, assim como Voltaire em sua época, hoje em dia os defensores não declarados da lei da necessidade empregam a lei da necessidade como uma arma contra a religião; da mesma forma que a lei de Copérnico na astronomia, a lei da necessidade na história não só não destrói como até reforça o solo sobre o qual são construídas as instituições governamentais e eclesiásticas.
Tal como na questão da astronomia antigamente, também agora na questão da história toda a diferença de opinião está fundamentada na admissão ou na rejeição da unidade absoluta que serve de medida aos fenômenos visíveis. Na astronomia, era a imobilidade da Terra; na história, é a independência da personalidade — a liberdade.
Assim como para a astronomia a dificuldade da admissão do movimento da Terra consistia em ter de renunciar à sensação do movimento dos planetas, também para a história a dificuldade da admissão da subordinação da personalidade às leis do espaço, do tempo e das causas consiste em ter de renunciar ao sentimento imediato da independência da própria personalidade. No entanto, assim como na astronomia a opinião nova dizia: “De fato, não sentimos o movimento da Terra, porém, ao admitir sua imobilidade, chegamos a um absurdo; mas ao admitir o movimento, que nós não sentimos, chegamos às leis” — também na história a opinião nova diz: “De fato, não sentimos nossa independência, porém ao admitir nossa liberdade chegamos a um absurdo; ao admitir a própria independência em face do mundo exterior, do tempo e das causas, chegamos às leis”.
No primeiro caso, era preciso renunciar à consciência de uma inexistente imobilidade no espaço e reconhecer um movimento que nós não sentimos; no caso presente, é igualmente necessário renunciar a uma liberdade inexistente e reconhecer uma dependência que não sentimos.
FIM"