spoiler visualizarMaria 04/10/2019
O que se faz com os filhos é importante
Primeiro contato que tive com a obra da autora e hoje eu resumiria a "resenha" da seguinte forma: PODERIA TER SIDO a vida de Pecola Breedlove se, a despeito de todas as tragédias vivenciadas pela sofrida menina d'O olho mais azul, ela houvesse tido a MÍNIMA possibilidade de vivenciar o amor. Mas Bride teve que lidar "apenas" com a rejeição da própria mãe (o que, para a grande maioria, já é algo tremendamente difícil de suportar); não foi violentada pelo pai; vislumbrou a possibilidade de receber algumas migalhas de afeto (nem que tenha tido que destruir a vida de alguém para isso, ainda que não totalmente consciente do que provocara); e, por fim, não foi "sequestrada" pela loucura. Ambas foram vítimas brutais do racismo, mas apenas uma conseguiu vencer a dor de já nascer "condenada".
Deus ajude essa criança”, um dos últimos livros da premiada autora Toni Morrison, primeira negra a receber o Prêmio Nobel, em 1993, é considerado um conto de fadas moderno, e não deixa de fazer todo o sentido. É a história de uma mulher que carrega consigo o drama de uma infância infeliz e, ao final, encontra o “príncipe encantado”. Soa tremendamente familiar, não é? :p
“Então ela estendeu a mão que ela desejara a vida inteira, a mão que não precisava mentir para merecer, a mão de confiança e atenção- um conjunto que alguns chamam de amor natural.”
No entanto, como ocorre nos contos de fadas, nossa heroína , Bride, nascida Lula Ann, passa por uma série de sofrimentos – nem sempre como sujeito passivo, diga-se de passagem- antes de encontrar o seu “final feliz.”
Imaginem uma criança ansiando desesperadamente por afeto e uma mãe que, de forma totalmente distorcida, tenta “protegê-la”, rejeitando-a e negando-lhe a tal ansiada afeição. E tudo isso porque a criança, pobrezinha, havia cometido o crime de nascer preta, muito preta, de tal forma que nem a mãe conseguia aproximar-se da filha, evitando qualquer contato físico.
“A cor dela é uma cruz que ela vai carregar para sempre.”
No desespero em obter o afeto tão ansiado - “Eu rezava para ela me dar uma bofetada ou uma surra só para sentir o toque.”- a nossa heroína acusa injustamente uma professora de pedofilia e, a partir de tal episódio, por um curto espaço de tempo, recebe as tais ansiadas migalhas, ainda que, em contrapartida, uma inocente tenha tido que pagar um altíssimo preço por isso.
Mas, exatamente como nos contos de fadas, a menina preta transforma-se em uma mulher deslumbrante, profissional bem sucedida do ramo de beleza, desejada – mas não amada- por todos.
“Nenhum deles era generoso, atencioso -nenhum interessado no que eu pensava, só na minha aparência. Brincando ou falando comigo como criancinha no que eu acreditava ser uma conversa séria antes deles encontrarem mais enfeites pros seus egos em outro lugar. Me lembro bem de um certo encontro, um estudante de Medicina, que me convenceu a ir com ele visitar a casa dos pais no Norte. Assim que ele me apresentou, ficou claro que ele queria assustar a família, um jeito de ameçar aquele velho casal branco e bondoso.”
E, mesmo ao encontrar o “verdadeiro amor”, nada é tão simples ou fácil para a belíssima Bride que, antes do eterno sim, precisa lidar com a perda -ainda que provisória- do bem amado:
“Como ele tinha me batido mais forte que um soco, com oito palavras: “Você não é a mulher que eu quero.” Como isso tinha me abalado tanto que eu concordei.
Booker, nosso “príncipe encantado”, não poderia compreender, assim como muitos, que alguém demonstrasse compaixão por uma pedófila, como a sua amada demonstrou, afinal, o irmão que amara fora assassinado por um pedófilo na infância. Ele ignorava que a mulher tida por todos como um “monstro” era inocente - “No mundo de Deus e Diabo em que eles viviam, nenhuma pessoa inocente era condenada à prisão.”- e, ao sair da prisão, Bride fora esperá-la ansiando por expiar a culpa, embora suas expectativas tenham sido completamente frustradas.
“Como ela podia pensar que dinheiro era capaz de apagar quinze anos de morte em vida?”
E, ao final, temos a “condenação” de Mel, a mãe de Bride, à solidão - “não julgueis”, mas, quem ignoraria a sua influência, ainda que indireta, não apenas pela dor da filha, mas pela tragédia vivida pela professora?- pois, assim como nos contos de fadas, as “madrastas” e “bruxas más” não costumam ser absolvidas.
“Me ensinou uma lição que eu devia ter sabido desde sempre. O que se faz com os filhos é importante. E eles podem não esquecer nunca.”
“É, eu era dura com ela. Sei que eu era. (…)Eu não podia deixar ela dar errado. Peguei pesado e alertei, contei os nomes todos que iam botar nela. Mesmo assim, alguma coisa que eu ensinei deve ter surtido efeito. Viu o que ela virou? Uma mulher de carreira, rica Dá para ser melhor?”
Enfim, temos essa avó, “magnanimamente”, após reconhecer e justificar a conduta com a filha, desejando que Deus proteja a criança que nascerá do relacionamento entre nossa heroína e o seu herói.
“Escute o que eu digo. Você está para descobrir como é a coisa, como é o mundo, como ele funciona e como ele muda quando a gente é mãe. Boa sorte e que Deus ajude essa criança.”