Clara 07/09/2021
Entre o neutro e o homogeneizante
Depois de dois longos anos desde que uma amiga me emprestara (e depois de já ter abandonado a leitura pelo meio umas duas vezes), finalmente terminei de ler Justiça Ancilar, da autora Ann Leckie, o primeiro de uma trilogia de ficção científica space opera que angariou uma série de prêmios no cenário da ficção especulativa. A proposta já me atraía há um tempão mas, creio eu, não poderia ter concluído a leitura em outras circunstâncias que não as de agora.
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A premissa já se destaca desde antes da introdução do enredo: o livro todo é escrito praticamente no feminino, por uma escolha de tradução. No império Radch, local em que a maior parte da ação se descortina, a língua materna não possui marcadores de gênero. Como se o livro inteiro fosse uma tradução da língua "radchai" para a língua inglesa, escolheu-se que quaisquer pronomes que ainda marcassem gênero (portanto, não neutros) fossem traduzidos para "she" ou "her" (a tradução para o português deixa isso ainda mais evidente). Desta forma, passamos a maior parte da ação da trama sem saber o sexo da maioria das personagens (uma vez que, na sociedade em que se passa a trama, isso sequer é relevante materialmente falando, mas já vamos chegar nesse ponto), o que já é um diferencial bem legal.
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Pra resumir a trama rapidinho antes que eu comece meu surto: o império Radch é uma potência expansionista interplanetária que domina a maior parte do mundo humano conhecido há mais de 3000 anos. Para suas missões colonizatórias (chamadas de "anexações"), suas tenentes se utilizam de grandes naves (Justiças, Misericórdias e Espadas), habitadas por IAs, as quais também, simultaneamente, habitam uma série de corpos humanos soldados em uma espécie de "hive mind", as chamadas "ancilares". Assim, as inteligências artificiais a serviço do império Radch não apenas são suas embarcações como também a própria tripulação de soldados encarregada de cumprir as ordens de suas superioras tenentes (geralmente vindas de famílias bem prestigiadas ou em franca ascenção dentro da hierarquia interna do império). Breq, a protagonista, um dia fora um destes ancilares. Um acontecimento de 19 anos atrás, contudo, a fez perder todos os seus corpos e sua nave principal, restando apenas um único corpo, que agora busca vingança contra ninguém menos que a líder do império: Anaander Mianaai, a Senhora do Radch, por motivos que passamos a compreender aos poucos, ao longo da trama.
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Demorei um bom tempo (ao menos, das primeiras vezes em que tentei ler) pra conseguir me ajustar às diversas sutilezas da narrativa de Breq, uma IA que sente mais do que deixa transparecer, inclusive para si mesma (especialmente para si mesma!). O modo como tanta coisa é deixada para a imaginação, e a comunicação sutil das personagens, que jamais entregam totalmente o que querem dizer, senão por uma série de meandros e rodeios na hora de abordar umas às outras, foi um pouco cansativo no início. Como eu adiantei antes, contudo, só poderia ter apreciado a narrativa depois de algumas experiências prévias: li Ursula K. Le Guin no início do ano (influência mais que direta, não só de Ann Leckie, como também de outras autoras mais recentes, como a incrível Becky Chambers), e foi impossível não me lembrar de seu "shifgrethor" que, dentre outros aspectos, ressoa no jeito diplomático de falar com outras pessoas sem aferir diretamente o que se quer dizer, o xadrez linguístico repleto de sutilezas (que podem facilmente se converter em rudezas por uma pessoa pouco habilidosa) com que as habitantes do planeta Inverno se comunicavam em meio à intriga política de A Mão Esquerda da Escuridão. Ficou bem, bem mais fácil de me deliciar com certas ironias depois de já ter lido Ursula, e Leckie consegue transformar sua influência em algo muito estimulante (o que não me impediu de me sentir meio burra em alguns momentos, mas eu que lute).
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A estrutura social do império Radch — sem marcadores de gênero na linguagem, tendo em vista a irrelevância do dimorfismo sexual na diferenciação das cidadãs — me fez pensar em um milhão de coisas, mas ler a lesbofeminista Monique Wittig antes desta releitura deu algo em que pensar (não sei se vou descrever corretamente algumas ideias dela aqui, mas vou tentar). Em seu texto "Não se nasce mulher", ela questiona a naturalidade com que teóricas feministas materialistas delineiam a divisão sexo/gênero, em que gênero teoricamente seria o elemento construído socialmente, enquanto que o sexo seria o dado biológico imutável. Ela dá um passo para trás nessa questão e questiona, inclusive, a naturalização do dimorfismo sexual, como se ele sempre tivesse o mesmo valor em todas as sociedades (com isso ela não quer dizer que não exista, biologicamente falando, sexos masculino e feminino, mas questionar o porquê desta diferença dimórfica ser relevante e precisar ser naturalizada, socialmente falando). A proposta dela, apesar do que possa parecer, é bastante materialista: seria necessário superar, primeiramente, as condições estruturais que tornam essa diferenciação relevante para que chegássemos em um patamar em que o dimorfismo sexual fosse tão importante quanto a cor dos cabelos ou o tamanho das unhas (mas ela deixa bem claro que ainda não alcançamos nada disso na estrutura). Lendo Justiça Ancilar, me pareceu que o Império Radch já alcançara aquele patamar, em que a diferença sexual restasse tão insignificante, a níveis de materialidade, que os marcadores de gênero só seriam necessários na hora de se comunicar com outras sociedades cuja linguagem (e sociedade) ainda a considerassem. E sabe o que é mais doido? Mesmo numa sociedade em que o gênero tenha sido abolido (nesse sentido), é interessante observar que outras hierarquias de opressão ainda permanecem. O que me leva ao segundo ponto.
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Se, por um lado, a linguagem radchaai expressa a superação da hierarquia sexual como a entendemos atualmente, por outro ela deixa bem clara a impossibilidade de se pensar a realidade daquele império senão por vieses imperialistas e expansionistas perante outras culturas e tradições. Nisso, me lembrei do que outra lesbofeminista, Marylin Frye, mais especificamente de seu artigo "The politics of reality". Nesse texto, ela argumenta que lésbicas não existem dentro da realidade patriarcal, quer dizer, a linguagem estruturada pela realidade nos impede de existirmos. Consultando o verbete "lésbica" em dicionários usuais de língua inglesa, a definição apresentada é de "uma mulher que mantém relações sexuais com outras mulheres". Só que, ao consultar "sexo"/"relação sexual" nestes mesmos dicionários, Frye se defronta com a definição de "penetração pênis-vagina" (sexo heterossexual), ou simplesmente situações que envolvam penetração peniana. Se relações lésbicas não possuem pênis, e se 1) lésbicas mantém sexo com outras mulheres, mas 2) sexo é definindo pela penetração, a conclusão deste raciocínio é a de que lésbicas são uma impossibilidade lógica e linguística.
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Frye vai esmiuçar tudo isso ao longo do artigo, mas meu ponto é o seguinte: em um dado momento, duas tenentes radchaai começam a conversar sobre pessoas "civilizadas" (as radchaai e aquelas que foram colonizadas durante as anexações, que passam a ser chamadas de "cidadãs") e as "não civilizadas" (portanto "não cidadãs"). Só que aí vem o pulo do gato: a palavra no idioma radchaai para "cidadã" é justamente "radchaai". Há uma impossibilidade lógica completa de que, dentro da realidade do Radch, exista uma cidadã de um mundo não-radchaai. Nesta conversa, as tenentes precisam recorrer a outros idiomas para se fazerem entender, pois a língua materna as limita neste sentido. Breq, disfarçada como uma estrangeira, em um dado momento questiona retoricamente uma personagem se "haveria a possibilidade de uma estrangeira também ser civilizada em seu respectivo povo". Na linguagem radchaai, contudo, isso é impossível: se a única palavra para cidadã é "radchaai", a condição sine qua non para ser sujeito de direitos, cidadã, indivíduo, é sendo radchaai, pertencer ao império. Qualquer coisa fora disso é menos que humana, e este foi um dos aspectos que mais me chamou a atenção na leitura, um dos aspectos que tornou o império ainda mais crível, enquanto potência expansionista: a impossibilidade lógica de existência do Outro (ou seria "da Outra"?) senão absorvida pelo ente colonizador.
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Há tanta coisa pra se falar, tanta coisa que absorvi nessa leitura que eu sinto que poderia tagarelar aqui o dia inteiro. É tudo tão bem cadenciado, tão cuidadoso, tão crível, que fico muito feliz de ter dado uma terceira chance à história, retomado a leitura, e ter aproveitado tanto (foi a primeira vez em muito tempo que li sem perceber o tempo passar). Confesso que não sei se leria tão cedo os outros dois livros da trilogia (é bastante informação pra absorver), mas espero reencontrar Breq e suas músicas em um futuro bem, bem próximo.
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"Meu coração é um peixe
Escondido na grama d'água
No verde, no verde".