Lucas.Sousa 30/03/2021
Homero, um mundo
Sobre a obra de Homero: as andanças do "sofredor" Odisseu (ou mais comumente, como nesta edição, Ulisses), inspiraram e permearam toda a cultura dita ocidental: dos poemas épicos subsequentes, como a Eneida e as Metamorfoses, como os já tardios poemas épicos da Baixa Idade Média e Renascimento, como a Divina Comédia e Os Lusíadas, passando pelos romances europeus dos séculos XVIII e XIX, até chegar na produção cinematográfica contemporânea, desde os grandes clássicos até os filmes mais industriais.
Mas o clássico sempre pode dizer muito mais do que ele já tenha dito. Sempre que a ele retornamos, sempre novas coisas ele pode nos ensinar. E precisamente por isso é um clássico.
Lendo pela primeira vez a obra em versos, finalmente superando as adaptações que resumem a história ou que passam os versos para prosa, percebemos a riqueza do mundo grego, e o quão diferente aquela sociedade era da nossa. Um mundo de cidades dominados por nobres e reis, com hábitos de distinção e identificação próprios, uma forte moralidade ligada a toda a concepção de mundo que é regida pela vontade dos deuses olimpianos, deuses menores da natureza, semi-deuses, e pela tradição dos homens mortais. Estranha muito essa cultura, que, claro, no poema é apenas representada como ideal moral, não como realidade. Ninguém falava e se comportava exatamente como é a descrição feita por Homero. Mas os valores defendidos nas ações dos homens estão ali representadas.
Mas o aspecto que fascina mais é a organização do trabalho nessa sociedade: aqui na Odisseia, muito mais que na Ilíada, vemos como este se organizava: essas cidades regidas por nobres e reis guerreavam umas com as outras por espólios e escravos, aos quais tornavam-se parte essencial da organização familiar, e também tendo direitos e sendo recompensados pela lealdade. Mas, para que tudo funcionasse da maneira ideal para a oligarquia dominante, era preciso uma grande quantidade de servos e servas, que tudo faziam: preparavam a comida, serviam os alimentos, cuidavam dos animais, cuidavam da casa e preparavam os cuidados dos senhores e de seus convidados. Agricultura, pecuária, comércio marítimo, guerras de pilhagem e pirataria eram as atividades econômicas comuns dos Aqueus, exercidas pelos próprios nobres, mas sobretudo pelos servos e escravos. Não tinha uma mão que era limpa sem o transporte de vasos com água por servos. Ao mesmo tempo, era nobre que um homem de boa linhagem construísse partes de sua própria casa, a caça de animais selvagens para o abate era vista como atividade aristocrática, e as assembleias de homens, que podiam ser convocadas a qualquer tempo, era atividade banal e frequentada por todos os patrícios.
É interessante ver também como a mobilidade social só poderia acontecer para baixo: Eumeu, o porqueiro, e Ulisses, quando ainda um mendigo estrangeiro, embora fossem de linhagem nobre e acabaram desgraçados segundo suas narrativas, não tinham mais possibilidade de tratamento igual. No máximo, recompensas como propriedades, riquezas, túnicas e outros ornamentos valiosos poderiam ser conquistadas pela hospitalidade e gratidão de outros nobres. Isso fica evidente quando Penélope, para permitir a entrega do arco a Ulisses para que este tente armar o arco e atire a seta pelos doze machados, diz que não há possibilidade de que este, se bem sucedido, a leve como esposa.
Enfim, seria possível enumerar infinitas características, só a partir de uma primeira leitura da obra integral. Não é a toa que até hoje as obras de Homero rendem estudos e teorias novas.
Para finalizar é preciso destacar a importância dessa edição: em versos livres, é quase tão fácil de ler quanto uma prosa. E conta com o excelente prefácio de Bernard Knox que traz várias características do poema que são muito interessantes e ajudam muito a compreender a riqueza de sua construção, além de tratar de algumas polêmicas e teorias acerca de sua autoria, composição e enredo.