Cardoso 10/07/2020
Eu, e imagino que muitos outros, não tive um contato significativo com a filosofia analítica; formado em história e interessado mais pelo campo filosófico do que o meu próprio, aventuro-me autodidaticamente. Não deixa de me ser notável, entretanto, como conteúdo do que se calhou, aos analíticos, chamar "filosofia continental" (termo que abomino) ser muito mais acessível que os escritos de clássicos filósofos da linguagem como Carnap, Kripke, Frege, etc.; o último, veja, considerado "fundador" da escola, cujo basilar "Begriffsschrift", publicado em 1879 (141 anos), só chegou ano passado ao Brasil. Não que isso não se aplique, também, a notáveis "continentais": o último volume da "Wissenschaft der logik" hegeliana chegou ao Brasil com 202 anos de atraso!; mas, de uma forma ou de outra, Hegel é mais lido aqui do que Frege (como hegelo-marxista, não considero um defeito).
Aqui cabe a qualidade deste livrinho, introdutório, mesmo, do francês Lacoste: introduzir, dentro da história da filosofia, a contribuição dos analíticos, que se estendem, para além dos nomes citados, à Russell, Wittgenstein (esses, sim, já bem conhecidos aqui), Ayer, Ryle, Austin, Neurath. Moore e outros; e mostrar os diálogos possíveis desses com os "continentais", como Husserl, Heideger, Sartre, Foucault, etc. A exposição dos debates e desenvolvimentos daqueles é excepcional; já em relação à esses, penso que deixa a desejar: o tratamento que o autor faz de Sartre, por exemplo, beira a desonestidade, instrumentalizando-o para servir de trampolim à exposição da obra moral do analítico Hare. A verdade é que o corajoso e intenso existencialismo sartreano, herdeiro da dialética hegeliana e amigo do marxismo, sofre uma crítica fraquíssima ao se colocar como uma forma de ética, coisa que não se propõe, sendo uma ontologia; ao ler a passagem do "julgamento" do fascista, que Lacoste propõe, cheguei ao cúmulo da impaciência: foda-se a justiça e suas regras lógicas! Se o código penal diferencia a "inabilidade", a "imprudência", a "falta de atenção" e a "negligência", coisas que Sartre, supostamente por não se ater a todos os dados lógicos necessários para uma "verdadeira" filosofia, deixaria de considerar, a realidade é que as 5 milhões de mortes de Eichmann ainda são sua "opressiva" e "orgulhosa" culpa, mesmo que, como Arendt bem analisou, ele só fosse um burocrata cumprindo sua função.
Essa uma das cinco estrelas que faltou para "A filosofia no século XX" receber nota máxima advém desse defeito, que se estende em ignorar à contribuição marxista ao pensamento do século XX; figuras como Lenin, Lukács, Adorno, Fanon e Badiou são obstáculos intransponíveis que são sumariamente ignorados. A "Critique de la raison dialectique" de Sartre, aliás, indicaria soluções outros de problemas que Lacoste levanta (ao supor um nazistinha leitor fundamentado em Nietzsche e sem "má-fé") sem dar resposta que esteja fora de sua querida analítica. Na tentativa de divulgação, Jean parte para um certo jogo baixo que não tolero. Enfim, leiam!