Rhuan Maciel 10/06/2022
Questão religiosa
Olhando para a sociedade russa, prevalecia dentre os aristocratas um certo
ceticismo, ou pelo menos um afastamento da religiosidade, muito influenciados pelo
pensamento de Voltaire. Portanto filhos de aristocratas não chegavam a ter muito
conhecimento acerca da religião, exemplos disso são Tolstói e Turguêniev. Então o
que acontecia era que eles travavam conhecimento dessas crenças através de seus
empregados, uma vez que, diferentemente de seus patriarcas, o povo possuía uma
imersão muito grande na igreja ortodoxa.
Em meio a tudo isso, Dostoiévski teve uma grande educação eclesiástica, já que
seus pais eram religiosos. Por isso aprendeu a ler em livros bíblicos e sempre
houve uma aceitação muito grande da palavra de Deus. Apesar de seu pai, com
seu temperamento carrancudo, chegar a questionar Deus os motivos de suas
penitências. E essa característica aparecerá nos romances de Fiódor. Um exemplo
claro é Ivan Karamázov e seu conto do Grande Inquisidor. Porém juntamente com
essa personagem vinha Aliócha e padre Zóssima, pessoas extremamente fiéis e
devotas. Essa dualidade dostoievkiana será latente ao longo de sua vida. E essa
questão é bem interessante, porque traz um conflito interior expresso em seus
livros. E embora seja crente, ele consegue trazer suas perguntas e seus conflitos
para dentro de suas personagens. Como pode um Deus benevolente reinar um
mundo com tanta injustiça? Essa pergunta também está intrínseca em suas
histórias. Em contraponto a humanidade e afeição pelo povo sofredor, pelos
desfavorecidos, sempre foi algo muito forte em suas ideias. Isso é claramente visto já em seu primeiro título, Gente Pobre, que inaugura um tipo de romance social,
retratando seres miseráveis, mas dotados de pensamentos, vontades e virtudes.
Uma frase do narrador de A Aldeia de Stepántchikovo expressa exatamente isso.
Golyádkin, em O Duplo, tem também um aprofundamento interno, contrastando
com uma personagem similar de Gógol em O Capote.
Formação cultural
Além de sua forte educação eclesiástica, Dostoiévski possuiu diversas influências
literárias ao longo de sua juventude. Karámzin foi um dos primeiros, trazendo o
sentimento nacional de exaltação à Rússia e também suas aspirações de vida
metafísica. Outros autores russos foram muito fortes em suas referências,
diferentemente da educação aristocrática, a qual prevalecia um ensinamento mais
europeu e ocidentalizado. Dostoiévski não, desde o início já travou contato com a
literatura nacional.
Walter Scott e Schiller também foram grandes referências ao russo, de forma que
a obra Os Bandoleiros foi recorrentemente referenciada e apropriada para seus
títulos. O alemão também exerceu grande relevância na vida de Dostoiévski,
trazendo assim as ideias do idealismo alemão para o autor, o qual irá no futuro
defender a tese da expressão da metafísica na forma da arte.
Porém a maior influência de todos os autores foi Púchkin, que figurou para a
criação de diversos personagens dostoiévskianos. Além de Dostoiévski sentir
bastante a morte do poeta. Toda essa força do escritor em sua vida durou até os
últimos dias.
Academia Militar de Engenharia
Foi um período conturbado na vida de Dostoiévski, onde perde seu pai e
desenvolve uma grande culpa em relação a isso. Já que todos achavam que o dr.
Dostoiévski fora assassinado pelos seus servos. E seu filho pedia constantemente
dinheiro para coisas não necessárias, apenas para não ficar destoando dos demais.
A conclusão do futuro escritor foi a de quê causara em partes esse incidente, uma
vez que a crise financeira de seu progenitor, provavelmente, foi um dos fatores que
pode ter levado o criado a cometer o crime. Pesquisas ulteriores colocam em dúvida
esse assassinato.
Após a morte de seus pais e de Púchkin, Fiódor convenceu-se a procurar,
entender e explicar o fator humano, suas nuances e segredos. A forma como foi
feita foi através da literatura, assim como acreditava o idealismo alemão. Essa
procura foi determinante para sua obra posterior, aprofundando a psique de cada
personagem.
Dois romances
"Na verdade, um dos segredos de seu gênio pode ter sido sua
recusa a optar sentimentalmente entre as tensões pessoais e as
tensões literárias criadas por sua igual devoção aos dois
romantismos. De um lado, temos seu compromisso com o
romantismo metafísico mais tradicionalmente cristão, preso ao
sobrenatural e ao transcendental - uma visão cristã pelo menos
em espírito, ainda que nela o artista seja substituído pelo
sacerdote e pelo santo. Mas, de outro lado, temos seu forte
apego emocional à aplicação prática dos valores cristãos da
piedade e do amor - à vaga “filantrópica” do romantismo social
francês que cresceu de maneira irrestível depois de 1830. Um
lado mantém seu olhos fixados piedosamente no eterno; o outro
reage às necessidades do momento. O primeiro concentra-se na
luta interior da alma por sua purificação; o segundo combate a
influência degradante de um ambiente embrutecedor. O
supremo valor atribuído ao sofrimento choca-se com a
compaixão pelos fracos e oprimidos; a necessidade de justificar
os desígnios de Deus para o homem colide com o desejo de
reformar o mundo. Essas forças em confronto atuaram sobre
Dostoiévski como dois imperativos, um de ordem moral, outro
religioso, e o equilíbrio dessas pressões opostas ajuda a explicar
o impacto sempre trágico de suas melhores obras literárias."
Gente Pobre
Dostoiévski, com a criação de sua primeira obra, sintetiza as narrativas de Gógol
e a visão de Púchkin. Bielínski o reconhece como uma grande promessa da
literatura russa, trazendo a inauguração do romance social, incorporando a escola
natural que está sendo desenvolvida. Portanto ele já estreia com um grande
alvoroço dentro da crítica literária, realizando o que queria.
O gênero epistolar, anteriormente, foi utilizado apenas para uma gama de
personagenes mais bem sucedidos, vulgo aristocracia. Assim Gente Pobre rompe
com essa tendência, colocando no panorama central duas personagens
paupérrimas. Entretanto a forma humana e psicológica são um dos fatores
diferenciais de Dostoiévski, pegando assim personagens gogolianos, mas não
tratando eles sob a ótica de alguém superior, mas sim de uma forma sentimental e
viva. Seus personagens possuem valores morais, e isso é visto de forma clara
quando Dievúchkin recebe o aperto de mão do juiz, a maneira como ele recebeu
aquela ação foi uma das demonstrações que ele não era simplesmente inferior
economicamente, mas sentia a inferioridade moral que o tratavam.
Essa obra foi um protesto contra a miséria humana. Fiódor demonstra a sua
sensibilidade e profundidade. Introduz na Rússia um gênero efervescente na
Europa, e que tomará proporções gigantescas na literatura e na teoria russa.
Aborda de uma forma artística o socialismo utópico francês. A contestação da
exploração e a degradação dos menos possuidores.
Com certeza a genialidade de Dostoiévski já é perceptiva nessa sua iniciação no
mundo de escritor, e várias características irão amadurecer dentro de seus
romances, principalmente essa questão psico-moral de seus personagens.
Plêiade de Belínski
No início houve uma relação de êxtase. Uma grande euforia tomou conta de
Belínski e seu círculo com o primeiro romance de Dostoiévski, já que a obra era
uma inovação na literatura russa. Gógol desenvolve suas histórias pela síntese,
enquanto Gente Pobre foi desenvolvido pela análise, observou a crítica literária.
Então o romance social ganha um nome de peso. Dostoiévski já de início ouviu
muitos elogios e deslumbrou-se com suas novas “amizades”, como Turguêniev e
Nekrássov. No entanto, a personalidade dificultosa do autor junto com seu deslumbramento o levaram a uma briga terrível. Assim Fiódor vai de um dos melhores momentos de sua vida para um dos piores. Sua relação com esse círculo literário foi constantemente degradando, seja com novos escritores ou com escritores já mais velhos. Dostoiévski, após todo o alvoroço, ficou extremamente difícil de se relacionar, já que achava-se um escritor sem igual, não dando ouvidos para as críticas. Logo após tudo isso acontece o desapontamento com O Duplo e alguns contos seus. Turguêniev começa bater de frente com a nova ascensão da
literatura, zombando com escritos de sua autoria. Outros nomes também dão continuidade a diversos conflitos e zombarias com Dostoiévski. Apesar disso Belínski não concorda com a coerção, porém irá rescindir com ele por outros motivos.
A ruptura entre os dois se dará por questões filosóficas, religiosas e morais.
Dostoiévski absorveu as ideias do idealismo alemão, colocando a arte suficiente por
si só, ou seja, não devendo sujeitá-la a nada, deixando o artista livre para compor
suas obras. Enquanto Belínski, influenciado pelo hegelianismo de esquerda e pela
escola natural, queria submeter a arte às utilidades humanas, devendo possuir uma
ligação com a prática. Outra divergência é o fato do socialismo utópico nas
concepções de ambos, uma vez que para o primeiro as ideias de Fourier e o
socialismo com o viés cristão era a chave para os problemas do mundo, e para o
segundo essa teoria já estava ultrapassada, chegando a assimilar críticas mais
fortes à religião, ocupando-se de economia política e uma moral humana superior a
moral divina. Dostoiévski continuava com a posição análoga a feuerbachiana, a qual
quer utilizar a base cristã para a revolução, embora Feuerbach tenha feito uma
crítica a religião. Max Stirner influenciou vários socialistas russos, rompendo com a
moral divina.
Círculo de Petrachévski
Dostoiévski não teve muita participação nesse círculo, já que seus encontros e
reuniões iam cada vez mais de encontro ao socialismo utópico e sua superação
(Feuerbach, Stirner). Uma vez ou outra participava quando atacavam sua
concepção de arte ou ofendiam Deus. Sua relação com Petrachévski era
formalmente boa, entretanto Fiódor não gostava desse homem, pois zombava
bastante da fé alheia e já entendia a religião como alienadora, concordando com
argumentos de uma nova moral humana, superior e focada no próprio homem.
Revolução e prisão
Dostoiévski com o tempo se afastava cada vez mais do círculo de Petrachévski,
no entanto Spechniev atraía sua atenção, de modo que entra em um grupo secreto
organizado por esse homem. Spechniev entendia a revolta popular e a utilização do
Estado como meios para o socialismo, diferenciando-se do forte fourierismo que
rondava o círculo de Petrachévski. É bastante ambígua a posição de Fiódor quanto
a essas convicções, e alguns críticos e historiadores colocam como se ele não
fosse favorável a essa ideia. Entretanto Joseph Frank discorda, e de acordo com
algumas atitudes de Dostoiévski, afirma sua posição no mínimo condescendente, se
não apoiador.
Outro círculo surge pelo rompimento com o excessivo fourierismo do anterior, o
círculo de Palm-Dúrov. Nesse meio filtrou-se aqueles que atribuíam a arte uma
mera ferramenta de agitação social, ficando a concepção idealista alemã e a
exaltação da arte pela arte. Assim vários integrantes se juntaram ao grupo pela
adesão à arte. Porém, também, o grupo secreto de Spechniev adentraram nesse
círculo, tentando torná-lo um biombo de suas posições revolucionárias. Dostoiévski
recita num desses encontros a carta de Bielínski a Gógol, reforçando as ideias
abolicionistas e contra-hegemônicas. Spechniev e seus parceiros possuíam a
intenção de criar obras que incitassem a população, o que não foi visto com bons
olhos pelo restante do círculo de Palm-Dúrov.
Enquanto isso, no círculo de Petrachévski discutia-se se a prioridade ação era
modificações na estrutura jurídica ou abolição da servidão. Sabe-se que
Petrachévski era contra a tomada do Estado pelo povo, e não gostava de escutar a
palavra ditadura, por isso apoiou a primeira opção, uma vez que a segunda poderia
trazer conflitos de classe catastróficos e decisivos para a sociedade russa. Também
é de conhecimento que Dostoiévski estava do lado dos que apoiavam a segunda
opção. No meio disso tudo haviam infiltrados da polícia no círculo, e mesmo
Dostoiévski participando só de duas das últimas reuniões, acabou sendo preso em
abril de 1849, junto com muitos integrantes do círculo de Petrachévski.
Obras menores
Em todas suas primeiras obras, Dostoiévski tenta utilizar-se de conceitos e estilos
já ultrapassados revitalizando-os. Alguns exemplos disso são: o gênero epistolar de
Gente Pobre, a utilização de doppelgänger em O Duplo, a alusão fantástica de A Senhoria, o personagem sonhador de Noites Brancas. Em todos esses, o autor
utiliza de recursos já conhecidos na literatura, porém tenta fazer algo novo com
eles.
Alguns conceitos de sua posterior obra já aparecem também nesse início, mesmo
que de forma ainda embrionária. Em A Senhoria, Dostoiévski desenvolve o tema da
liberdade com a servidão de Ekaterina, a qual não é obrigada a nada, entretanto
pelas suas próprias características, coloca-se nessa posição de subjugação. E já
aparece nas palavras do velho Múrin o que será abordado na Lenda do Grande
Inquisidor.
Disputa pela arte
No que tange a sua visão sobre a arte, Dostoiévski fica no caminho da discussão
de seu tempo. Enquanto os socialistas utópicos, Bielínski e a escola natural
colocam a arte como um objeto das questões práticas da vida, os anteriores
idealistas alemães entendiam-na como uma forma de conhecimento transcendental,
elevando-na a algo puro e suficiente por si só. Assim, Dostoiévski encontra-se em
um meio termo dessas divergências. Ele não crê que a arte deva ser um mero
apêndice da política, porém também vê a importância do romance social na
sociedade. Então vale a ideia de que ele tenta juntar as duas visões, não sendo um
nem o outro.