Camille.Pezzino 18/09/2019
O BAÚ DE OLYMPIA BINEWSKI
Aos aficionados e amantes da sexta arte, é sempre bom recordar que existem dois tipos de literatura: a primeira é a do conforto, aquela que insere em sua vida um pouco mais de alegria ou de tristeza, porém a premissa é o entretenimento e, por mais que existam lições de vida, continua seguindo padrões sociais estabelecidos e aclamados. A segunda, ao contrário da anterior em gênero, número e grau, é a do desconforto, aquele tipo de trama que sugará suas noites de sono e te embebedará em reflexões a respeito do que foi apresentado e do quão estranho isso tudo pode soar.
Estranho é o adjetivo que define Geek Love, a obra escrita por Katherine Dunn, a qual fez revoluções mundo afora sobre o que é o bizarro, o conceito de família, a medida do amor – seja ele doentio ou não – e, acima de tudo, o conceito de normalidade trabalhando o seu antônimo.
O livro tem como narradora Olympia, a penúltima filha de um casal que fazia experimentos bizarros para ter filhos fora dos padrões de normalidade com o intuito de apresentá-los no circo Binewski, o qual pertence à família, e se divide entre o presente e o passado dela. Essa divisão, por mais brilhante que seja – já que o presente vem se justificando na medida em que o passado é contato –, às vezes, peca em execução justamente por cortar o clímax de algumas cenas.
Entretanto, essa transição não tira – em absoluto – as reflexões trazidas no decorrer da leitura, pois, por mais que muitos autores ilustres e estudiosos fascinantes digam que é uma obra sobre a anormalidade e o estranho – em um processo de contraponto com a normalidade –, terei que ser petulante o suficiente para discordar. Ao ler Geek Love, por mais que os protagonistas fossem estranhamente fora dos padrões de beleza e sociedade, o que abalou as minhas estruturas foi o modo como Dunn conseguiu trabalhar a normalidade tão bem enquanto a voz era daqueles que são considerados monstros, terríveis ou até geeks, na terminologia original alemã, malucos.
Eu não posso negar que Geek Love trabalha a anormalidade, mas, depois de pensar muito, percebi que o mais desconfortante nessa obra – e por isso a classifico no segundo tipo de literatura ao qual a maioria dos clássicos pertence – diz respeito à estranha normalidade que tudo soava o tempo todo.
Ao adentrarmos em um circo padrão, podemos encontrar figuras que fogem dos estereótipos facilmente, como mulheres barbadas, homens engolindo espadas, etc. No entanto, encontramos, no circo Binewski, crianças com nadadeiras, gêmeas siamesas e anãs albinas, além do Cano, um lugar repleto de bebês, que não deram certo, em tubos.
No início, temos um choque de realidade perante ao apresentado, começando pelo fato de valorizarmos a criança, a infância e a inocência, abarcadas pela postulação da ideia de infância que passou a existir a partir do século XIX, justamente por causa disso, nós nos incomodamos porque as crianças, no livro, são – ao nosso ver padrão – defeituosas e há uma porção delas mortas dentro de tubos; em sequência, esse confronto se transforma, visto que o valor dado a elas pelos pais é proporcional a sua deformidade: o fato de elas serem defeituosas é o motivo pelo qual seus pais não a abandonam, já que, caso nasçam normais, não possuem utilidade.
A subversão de valores apresentadas por Dunn nada mais é do que o reflexo de como agimos e tratamos aqueles que não são parecidos conosco. Se víssemos uma criança com nadadeiras, sentaríamos perto dela ou nos afastaríamos? Há dois tipos de pessoas, na categorização que parece ser apresentada por Dunn a priori, a primeira é aquela que sente pena; a outra, a que demonstra aversão. Contudo, Arturo – o Aqua Boy – mostra que tais sentimentos são intercambiáveis ao ponto de aversão virar veneração e pena se tornar raiva. Tudo, é claro, com uma medida de manipulação que poderíamos encontrar em figuras como Hitler.
Embora o livro seja sobre a história dos Binewski como um todo, Arturo é a estrela principal e a maior atração do circo e do leitor; não somente porque Olympia – a irmã secretamente apaixonada por ele – é a narradora, mas pelo fato de a ascensão e a decadência dos Binewski se deverem diretamente as suas atitudes e as suas palavras. Arturo Binewski é o tipo de personagem que mais amamos e, ao mesmo tempo, nos provoca aversão e ódio, visto que a sua inteligência é esmagadora, a sua forma de pensar é o maior catalizador para que confrontemos as nossas ideologias, no entanto, não deixa de ser um megalomaníaco manipulador que não mede nenhum esforço para ser o centro de tudo.
Geek Love traz consigo uma relação parental abusiva e um relacionamento amoroso não concretizado que soa extremamente absurdo, é um livro que, trabalhando os conceitos mais primordiais da sociedade, como família, amor e religião, tira-nos da nossa posição de conforto e nos faz questionar sobre o que estamos fazendo e se não estamos cometendo, em certa medida, os mesmos erros que nossos ancestrais enquanto cultivamos os nossos próprios monstros.
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