Ladyce 05/01/2010
Os herdeiros dos velhos baronatos.
Comecei o ano de 2010 com a leitura de um clássico brasileiro, um livro cujo título virou quase que um jargão, com muitas pessoas o repetindo, já sem saberem referência exata. Uma pequena busca no Google mostra esta frase sendo usada para os mais diversos fins. Sinal do seu grande sucesso. Olha para céu, Frederico! foi o meu segundo José Cândido de Carvalho. Conhecido de todos que freqüentaram escolas brasileiras pelo romance O Coronel e o Lobisomen, José Candido de Carvalho acabou tendo o resto de sua obra injustamente relegada a um outro patamar. Então hoje, começo a colocar em dia a dívida que tenho comigo mesma de conhecer melhor o trabalho deste autor fluminense.
A característica mais marcante deste romance, além do retrato dos negócios e da decadência moral das famílias usineiras de açúcar da região de Campos dos Goytacazes, é, sem dúvida, um delicioso senso de humor que seduz e capacita o escritor a falar de assuntos sérios sem que venha a melindrar os orgulhos de famílias locais ou as politicagens bastante conhecidas dos anos 30 na região retratada. Além deste senso de humor, há no romance inteiro, as mais saborosas expressões, figuras de linguagem, que me fizeram parar a leitura e anotá-las, não só porque me pareceram novas, mas também porque me fizeram recordar de umas outras tantas maneiras de falar de pessoas que conheci na minha infância, quando a influência e a homogeneização da cultura através dos meios de comunicação nacionais não era ainda tão extensa. Aqui estão algumas dessas delícias:
“Quem visse Frederico assim de fala mole, com miséria nas conversas, era capaz de acreditar num São Martinho encalhado, de rodas mortas, com ninho de rato nas fornalhas. Conheci e vi morrer meu tio com esses lamentos que só acabaram quando sua boca se fechou vazia de palavras”.
“Era alto como vela de promessa”.
“Tanta gentileza acabou por trazer Dona Lúcia para a cama de Frederico. Os parentes é que não viam nada. Só olhavam a velhice de meu tio, a plantação que podia nascer em sua testa”. … “Agora, com um simples negócio de altar, os mourões do São Martinho ficavam sendo as pitangueiras da praia”.
“O raposão do meu tio não mostrava as unhas. Na varanda, de tarde, esparramado na cadeira de preguiça, lia os jornais. Vinha gente tirar prosa com ele. Conversinhas de calor, da miséria de fim de vida que andava solta pelo mundo”.
“Os barões, dependurados em pregos de parede, por trás das barbas , espiavam meus desmandos”.
Eduardo, nosso narrador, um menino órfão, vai morar com o tio Frederico e nunca chega a entender o velho. Não percebe como o tio era uma raposa velha, sempre comendo beiradas, parecendo um cordeirinho, mas que na hora H, dava o bote certeiro arrancando tudo do vizinho, do parente mais próximo, de quem fosse mais fraco, mesmo sem o saber. Frederico era um estrategista, com homem com olho grande, matreiro, conhecedor das fraquezas humanas.
Tendo passado os primeiros anos de sua vida na família de outro tio, Eduardo, chega à casa de Frederico cheio de orgulho por seus antepassados, nobreza brasileira, dona de terras e de gente. Depois de quase quinze anos no engenho São Martinho, com Frederico, ele recebe uma vistosa herança quando o tio morre. Mas Eduardo mostra que todo o tempo passado nessa usina de açúcar, pouco o atingiu. Só mesmo o aprendizado de sem-vergonhice vingou. No mais, ele que parece aberto à modernidade, às máquinas para melhor aproveitamento da cana de açúcar, mas logo, logo, mostra que em seu íntimo ainda vive de um esplendor imaginado da época de seus antepassados e espalha arrogância e desprezo pelos outros.
E assim vai o romance, com a prosa descontraída das conversas de varanda, com ritmo próprio que acompanha um enrolar de cigarro de palha, ou se cala para ouvir os primeiros grilos de um início de noite. Mas, por trás desta ingenuidade quase caipira, há uma forte crítica à sociedade dos usineiros, dos donos das terras, dos decadentes baronatos, gente com mentalidade de estupradores da terra, piratas permissionários pela monarquia, que pouco construíram além de famílias ilegítimas, de uma prole gerada com ex-escravas ou mulheres sem condições financeiras. Este grupo de irresponsáveis, mal letrados, preferiu continuar com a exploração nos moldes escravagistas, em que todos de quem dependia cresciam abandonados, sem recursos financeiros ou intelectuais, fadados a perpetuar a pobreza no campo por gerações e gerações futuras.
Olha para o céu, Frederico! é um livro que vale a pena ser lido, para nos lembrarmos também de como chegamos aqui, até hoje, em 2010. E para sabermos não repetir os erros do passado, de um passado nem tão longínquo. Apesar da seriedade do assunto tratado, o texto é leve, cheio de passagens humorísticas que nos levam facilmente ao fim sem sermões, sem dogmatismo. Uma excelente leitura.