Ronan 14/02/2021
Um dos poucos livros que tratam da história da homossexualidade no Brasil tem como proposta abordar o tema desde a colônia até os dias atuais. Lembro-me de ter lido uma vez a obra “Além do carnaval”, mas seu escopo era o século XX. Forçoso reconhecer que o autor de Devassos no paraíso, um jornalista, fez uma vasta e ampla pesquisa para viabilizá-la, além de contar com sua vivência como militante pelos direitos homossexuais no Brasil dos anos 70 e 80 em plena ditadura. Enquanto historiador, enxergo no texto uma fluidez que só um jornalista pode imprimir, mas que ao mesmo tempo quebra a rigidez metodológica que, muitas vezes, a História enquanto disciplina impõe. Antes de mais nada, o autor problematiza aquilo que se tem enquanto imagem do Brasil lá fora, ou a imagem que nós fazemos de nós mesmos, uma imagem muitas vezes hiper sexualizada pelos estrangeiros, que enxergam aqui aquele utópico paraíso tropical e erótico. Para tanto ele se vale de vários personagens estrangeiros gays que nos frequentaram e deixaram registros.
No mundo colonial, o choque entre a liberdade sexual que havia entre os indígenas brasileiros, que encaravam a sexualidade com bastante naturalidade, e o português colonizador, munido da fé católica dá o tom. Os julgamentos da inquisição, o conceito de sodomia (muito mais amplo que meramente o sexo entre pessoas do mesmo sexo) o escrutínio com que os padres buscavam “provas” dos crimes cometidos, denotando sadismo e interesse ao mesmo tempo vão formando a “moral” religiosa pela qual a homossexualidade será vista e vivida no Brasil.
A partir do séc. XIX o discurso da medicina toma o lugar do discurso religioso, enxergando na homossexualidade uma doença a ser tratada, a “ciência” assume o discurso sobre a sexualidade humana e sobre os corpos, do XIX para o XX a psicologia, ainda em seus primórdios, também corrobora esse discurso médico-higienista que se projeta também para o campo “racial”. Surgem pseudo tratamentos e os homossexuais passam a ser tolerados como doentes, desde que não corrompessem com sua “doença” ao resto do corpo social
Em termos de luta política e de ideologias, quer sejam elas de esquerda ou de direita, o autor ressalta que ao longo do século XX a homossexualidade era combatida claramente pela direita e não era vista como uma pauta digna e importante pela esquerda, que enxergava nela uma luta menor diante da emancipação do proletariado e das pautas econômicas e de classe. Durante a ditadura militar, muitas vezes a esquerda cooptou o nascente movimento pelos direitos LGBT para engrossar sua fileiras, sem necessariamente encampar suas lutas. Também nesse período o autor enxerga uma apropriação do tema pela televisão e pela mídia no sentido de monetizar ou lucrar com isso. Personagens gays estereotipadas despontam nas telas, mas sempre à margem, mais como motivo de chacota do que como uma visibilidade positiva, como nas novelas por exemplo.
Há todo um trecho da obra que trata do ódio e dos crimes contra homossexuais motivados por ele que foram e são cometidos no Brasil, a crueldade e os motivos torpes que escamoteiam uma sociedade conservadora, hipócrita, violenta e desigual vêm todos à tona nos horrores por ele descritos. Infelizmente algo muito atual já que os crimes cometidos contra homossexuais estão recrudescendo nos últimos anos, a ponto de o STF ter tratado da questão recentemente.
Os anos 90 trazem consigo avanços significativos, mas também o risco, segundo o autor, de o movimento LGBT limitar-se a reproduzir uma lógica de relações que é própria da heteronormatividade, em troca de obter sua legitimidade em pautas como o casamento por exemplo. O surgimento de “nichos de consumo” e de performances (de macho, de bear, de barbie etc...) na comunidade gay aproximam as relações de mercado das relações do afeto e do desejo algo problemático para ele. Por fim, a partir dos anos 2000, a política conservadora, os neopentecostais cada vez mais presentes nela com sua pauta de costumes e os acordos promovidos com esses grupos pelos partidos de esquerda no poder em troca de apoio político configuram-se em novos desafios a serem enfrentados.