Bruno Oliveira 28/07/2014Contra a tradição e pela filosofiaA Contra-História da Filosofia ficou bastante conhecida não somente por conta de seu idiossincrático autor, Michel Onfray, mas também por suas intenções bastante provocativas, uma vez que ela, ao pretender subverter certa corrente historiográfica que valorizaria demasiadamente certos filósofos em detrimento de outros, acaba resgatando aqueles pensadores historicamente derrotados, colocados à margem da História. Com isso, ela revira os esqueletos da História da Filosofia e incomoda certo estado de coisas do mundo acadêmico.
Pessoalmente, os livros de Onfray despertaram meu interesse desde que soube deles e, embora tenha lido somente os três primeiros volumes da coleção até agora, espero poder fazer uma caracterização justa dela. Meu estilo segue, por traquinagem, o próprio estilo empregado por Onfray nos livros.
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Manual de ponta cabeça? Há uma questão que se impõe ao leitor de Onfray: a Contra-História da Filosofia é um manual de História da Filosofia? Melhor dizendo, a coleção consiste num conjunto de manuais de História da Filosofia que enfatiza certos aspectos diferentes daqueles enfatizados por outros manuais? Uma questão dessa sorte tem importância para guiar nosso entendimento da obra, pois caso suscite uma resposta positiva, então o que Onfray está propondo é uma mudança na seleções que fazemos da história da cultura, ou seja, que em vez de olharmos mais detidamente para certas coisas, olhemos mais detidamente para outras; contudo, caso tal questão suscite uma resposta negativa, então o que Onfray propõe é uma mudança na perspectiva pela qual consideramos o assunto, quer dizer, que mudemos nossa maneira de compreender a História da Filosofia, enfim, que viremos de algum modo os manuais de Filosofia de ponta-cabeça. Vejamos então, até o fim da resenha, o que poderemos dizer sobre isso.
Mostrar, esconder, deturpar… Onfray não utiliza notas de rodapé, não oferece referências bibliográficas, nem enuncia claramente a origem das muitas informações que despeja sobre o leitor, aliás, sua escrita, elegante e simples, produz uma mistura pessoalíssima de biografia e explicação filosófica que não pretende atingir aquela rigorosa objetividade histórica praticada na academia. A Contra-História da Filosofia não informa à maneira de um manual o que pensaram os filósofos de outrora, ela apenas concentra diversos comentários de Onfray acerca deles naquele estilo aforismático e bigodudo bem conhecido por nós. Sendo assim, nada de explicações detalhadas das filosofias, nem do ocultamento das preferências filosóficas do autor (Nietzsche, Epicuro e Montaigne, sobretudo).
Com efeito, caso o leitor não conheça anteriormente (pelos manuais criticados na obra?) os pensadores que estão em questão, ele não saberá distinguir a subversão operada por Onfray, isto é, aquilo que ele mostra, esconde e deturpa, contudo, caso ignoremos Onfray, também não saberemos o que os manuais tradicionais normatizam em sua maneira de mostrar, esconder e deturpar.
Superficial… Como um espinho? A consequência desse modo despojado de escrever é o predomínio de certa superficialidade na abordagem dos autores. Onfray não conhece tão bem os autores que apresenta – aliás, ninguém conhece… – e o livro funciona como um manifesto que busca anunciar algumas filosofias abandonadas e denunciar seu proposital esquecimento. Tal superficialidade, entretanto, não é tola ou impensada; ela está lá como espinho está na superfície da rosa: pronto para perfurar quem o subestima. Como todos os manifestos a Contra-História soa um tanto caricatural, um tanto imprecisa, e um bocado verdadeira.
O jardim de Onfray. O aspecto técnico da filosofia, a argumentação e a demonstração em que estão fundados os discursos filosóficos, sequer é mencionado na obra. A Teoria do conhecimento e a Lógica são completamente ignoradas nos livros, e o autor apresenta somente os “resultados” das várias filosofias como se a construção argumentativa desses resultados não fosse importante. Da maneira como Onfray expõe, todos os filósofos parecem simples expositores das ideias a que chegaram por conta de meras idiossincrasias, como se a Filosofia fosse uma espécie de exposição refinada das singularidades dessas pessoas. Literatura sofisticada sobre ética, deus e política. No jardim de Onfray os filósofos escolhem os frutos por gosto – alguns preferem maçãs, outros uvas e assim por diante… Perspectivismo? Possivelmente… Ou apenas provocação…
Quais filósofos? É saborosa a escolha dos filósofos feita pelo autor. Lemos no primeiro volume sobre Filodemo e Lucrécio em vez de Aristóteles e Platão; no segundo, nenhuma palavra é dita sobre Agostinho ou Tomás – graças à deus; no terceiro, lemos sobre Gassendi e Espinosa – de Descartes vemos somente a sombra. Além destes, o autor apresenta um verdadeiro desfile de aberrações: filósofos defensores do canibalismo, degustadores do patê de feto, católicos epicuristas, defensores do suicídio, e outros que fazem a filosofia oficial parecer excessivamente monótona e cristã.
O critério de seleção parece ser o compartilhamento – em diferentes medidas – de certas características por parte desses filósofos: o materialismo, o gnosticismo, o hedonismo, a não-religiosidade (ou não-religiosidade cristã) e todo o mais que poderia agradar um iluminista, pronto para destruir à moral, a religião e o Estado. As mulheres, os judeus e os árabes, contudo, continuam tão excluídos da Contra-História quanto são da História… Nesse aspecto, então, sejamos contra ambas.
Retratos. Os retratos pintados por Onfray são muito semelhantes: os filósofos parecem muito entre si e demais com o autor que os compõe. Da Antiguidade à Modernidade, todos são pintados com as mesmas tintas, com as mesmas cores, e quando ocorre que o pintor não as encontre no modelo original, não lhe parece vergonhoso carregar um pouco mais nas tintas até que formem o tableau desejado…
Em diversos momentos, os filósofos que Onfray aborda parecem grandes expositores das mesmas verdades que ele mesmo sustenta. Às vezes, assemelhá-los assim constitui uma franca provocação ao leitor, às vezes, trata-se de mero anacronismo, erro mesmo. Não é simples, entretanto, perceber a diferença entre os casos e julgar devidamente o autor. O retrato que Onfray faz de si também é assim exagerado, provocador, fingidor…
A que serve a obra? Por fim, eis o meu juízo: a Contra-História é, certas vezes, uma coleção de manuais apologistas de certa linha historiográfica; outras vezes, uma apresentação de um mundo escondido pela Filosofia que venceu até agora. A obra pende para um lado e para o outro sem muito equilíbrio.
O autor também não pretende promover uma grande investigação historiográfica, por conseguinte, compõe uma coleção que pode ser facilmente questionada nos seus detalhes por aqueles que conheçam bem o assunto, entretanto, aqueles que conhecem bem o assunto não estarão nesse questionamento justamente porque discutir picuinhas tem pouco valor para o seu conhecimento.
No meu modo de ver, Onfray consegue ser panfletário e interessante, e malgrado os problemas de sua obra sejam notórios, eles não constituem grandes defeitos dentro dela, uma vez que o que faz a obra lograr sucesso é, primeiramente, o conjunto de autores inusuais que ela apresenta e, fora isso, os elementos que ela fornece para que repensemos o modo estático como a História da Filosofia é comumente apresentada. Nesse sentido, a Contra-História traz diversas contribuições que fazem com que seu pobre aspecto técnico e informativo seja aceitável. No conjunto, trata-se de uma bela obra que suscita muitas polêmicas caso seja considerada seriamente.
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