Lina Jones 08/03/2024
Uma obra prima muito mal compreendida no Ocidente.
Que pena ver que esse livro está tão mal avaliado no Skoob. Esse romance é extremamente relevante, é uma pequena janela pela qual podemos observar um fenômeno cultural tão típico do Japão moderno.
Em qualquer país existem grupos de pessoas que são excluídas socialmente, que sofrem pressão para se enquadrar em moldes pré-definidos do que é uma vida "aceitável", e pessoas neurodiversas sentem essa pressão elevada à décima potência.
Porém, enquanto as sociedades Ocidentais foram fundadas sobre ideais como liberdade e individualidade, o Japão foi fundado em princípios confucionistas onde o bem-estar do grupo está acima do indivíduo. Qualquer pessoa que não se encaixe no coletivo está indo contra ele, e portanto é excluída da sociedade, ou da "vila", como o personagem Shihara sempre diz durante o livro. E assim tem sido desde os primórdios dessa cultura milenar.
A protagonista Keiko é claramente uma pessoa neurotípica, mas nunca é explicado que tipo de neurodivergência ela possui, embora ela apresente características do espectro autista e do transtorno de personalidade antisocial - ela tem tendências violentas e não compreende emoções ou aparenta ter empatia - mas ela evita agir com violência pois deseja se enquadrar e seguir as regras, e já foi punida desde cedo por suas tendências violentas. Mas fingir que está tudo bem e torcer para que ela seja magicamente "curada" é uma solução mais aceitável do que um diagnóstico, pois um diagnóstico seria a comprovação de que Keiko é de fato diferente.
Keiko é extremamente bem construída, não apenas como uma pessoa neurodivergente, mas como uma mulher neurodivergente. A forma como seus sintomas se manifestam é tipicamente feminina - o desejo de se enquadrar nas normas, a constante tentativa de mascarar seus sintomas, o hiperfoco no trabalho onde ela pode se sentir como um membro útil da sociedade, a tentativa de se vestir e se comportar de forma apropriada para sua idade ao imitar suas amigas e colegas de trabalho... Keiko QUER pertencer e ser útil.
Em contrapartida, o antagonista Shiraha demonstra apenas raiva e desdém pela sociedade e por não se encaixar, e decide se isolar do mundo. 90% dos hikikomoris (pessoas que se isolam da sociedade e não saem mais de casa) são do sexo masculino.
Em suma, por mais que a história de Keiko e Shiraha seja curta e rápida de ler, ela explora tópicos muito, muito profundos, e deve ser lida com cuidado, levando em consideração o contexto cultural e social no qual foi escrito. Não é um livro que vai te dar tudo "mastigado", e quem não tem conhecimento sobre certas convenções sociais do Japão moderno, pode acabar achando raso.
Eu amei esse romance e a todo momento torci por Keiko. O final foi impressionante, um grande dedo do meio para a sociedade coletivista japonesa e um ato de rebeldia. Um acalento a todos aqueles que já se sentiram "fora dos moldes" e coagidos a abandonarem suas vocações, desejos e sonhos a fim de se tornarem palatáveis.